quarta-feira, 27 de abril de 2011

O Doritos e o ser/estar

Era a noite de ontem eu me dirigia à aula enquanto comia Doritos. Tenho especial gosto por Doritos com seu tempero artificial e seu gosto forte. Comia e sujava os meus dedos de um alaranjado forte forte, cheio de corante, todos sabem como é. O alaranjado que fica e que você depois lambe porque sabe que o gosto é mais concentrado ainda do que no próprio salgadinho.

Então comia e excitado na expectativa de acumular a maior quantidade de tempero nos dedos para, no final, colocar tudo na boca. Quando pegava os últimos triângulos, pensei: "como eu sou feliz comendo Doritos até acumular o tempero". Porém um segundo depois já vi que não, que não era feliz fazendo aquilo; que eu estava feliz fazendo aquilo.

Há quem ache que a felicidade é um estado de momento ou um estado duradouro, contudo eu vou tentar explicar o que se passou em minha cabeça. O fato é que eu não poderia ser feliz comendo Doritos, visto que o ser traz o signo de durabilidade e perenidade. Se eu fosse feliz comendo Doritos, eu seria sempre feliz comendo Doritos. Isto é, em todos os momentos da minha felicidade eu estaria comendo Doritos ou sempre em que eu comesse o salgadinho eu seria feliz. E é óbvio que ambas as alternativas são impossíveis ou, ao menos, irreais.

Em As Meninas, Lygia Fagundes Telles, por meio da personagem Lorena, introduz a diferenciação entre ser e estar. Não sei se a escritora pegou a ideia de um filósofo, mas o cerne de tudo é que ela diz que no momento em que você está, você já não é. Porque estar é apresentar-se perante um grupo social, e nisso você já se submeteu às regras do jogo e sacrificou parte do seu ser para competir melhor. Somente sozinho alguém pode realmente ser, já que assim as únicas regras às quais haveria o dever de se submeter seriam as regras do self (você pode ler o trecho do livro neste post antigo do blog).

No inglês e no francês o verbo ser/estar são os mesmos verbos (to be e être) - não faço a menor ideia do por quê.  Entretanto eles são diferentes, visto que eu posso estar feliz comendo Doritos, porém nunca posso ser feliz fazendo-o. Minhas expectativas e sonhos para o futuro não incluem comer o tempero de meus dedos, mas, sim, algo mais produtivo, digamos. E também porque um salgadinho não pode satisfazer meus desejos mais internos. Aliás, mal sei eu quais são meus desejos mais internos. Ou quais estão meus desejos mais internos? Desejos de momento ou de vida? Tão desgastante saber de nossos desejos. E o futuro agora?

(Outra crise existencial chegando...)

terça-feira, 19 de abril de 2011

Primeira receita para extrair poema

Primeiro escalavrar a alma
Até vazar o choro retido
É preciso ter cuidado
Muito fio na faca afoga a alma em sangue
E ninguém gosta do verso aguado
Porém na medida certa e no momento certeiro
O sangue vez em quando é bom
Porque um vermelhinho é de um tom querido
Ainda mais quando vindo do peito

E por falar em peito
O amigo dali é sempre pertinente

Porém tem que ter o peito livre
E limpo
Peito sujo esconde a poesia
Que bela é sempre tímida
O bom verso não aparece na sujeira
Tudo deve estar às claras
Tudo bem resolvido
Mentira na cabeça é mentira-poema
E mentira-poema não é um poema
É só uma mentira
Usada pra fingir que faz dilema

Após o banho quente
Você perdoa
Não o seu maior inimigo
Porque inimigos são sempre assunto-poesia
O perdão se exige em si próprio
Como perdoar a si mesmo
Ou àquele erro cometido anos atrás...
O próprio perdão é poema
Senão pode virar tumor, como dizia Viviane
E Viviane é sábia
Acho que não tem tumores
Porque sabe escalavrar na hora certa.

É preciso o cuidado para não arranhar
E não verter a amargura antes do tempo
É preciso não ter tempo
Ao fazer poema.

O tempo é mentira do poema
Só pra se fazer em um sistema.

O doce do poema

sábado, 16 de abril de 2011

Talvez fosse desatino

Então que me espantei por ter me lembrado do sonho, porque ultimamente não me lembro de sonhos. O que me acalma é que sei que ainda os tenho, apesar de não os recordar. Mas como eu dizia, lembrei-me do sonho. Era algo simples e não vou me ater muito em sua descrição, até porque não sou muito bom em descrever. O fato é que eu havia saído da minha aula de francês à noite e chovia e chovia, e eu só esperava o ônibus, ficava esperando e esperando contudo ele nunca chegava, chovia tanto que me dava vontade de chorar. Sabe quando parece que o céu são os olhos e as nuvens as bolsas embaixo? Este era o caso, o céu chovia minhas lágrimas, eu era todo angústia em espera. Quer dizer, toda espera é dotada de um pouco angústia, porém ali, no meu sonho, era tudo exacerbado, talvez fosse minha loucura sem as rédeas, e eu pensava e pensava no ônibus que nunca chegaria, passavam várias linhas sem aparecer a minha. Pessoas chegavam e saíam, iam e viam; a mim, restava o corredor barreado e empoçado.

Em um momento, tive a ideia de caminhar até a próxima parada. Fui até lá e descobri que haviam mudado o percurso do ônibus. Ninguém me avisara, o condutor passava há horas e horas por ali (ou quem sabe dias? alguém se atrever a instituir o tempo em sonhos?). Não me avisaram e eu chorava as lágrimas do céu, todo banhado em angústia e tristeza, queria ir para a Tristeza mas estava imerso nela, então o cabelo molhava e a mochila encharcava, todo preocupado com os livros dentro que poderiam enrugar. Talvez eu estivesse enrugando. E deixo a quem quiser a interpretação disso, eu mesmo tenho as minhas teorias porém não as divulgo porque não lhes faz diferença eu me expor. Só sei que no sonho minha vida era espera. Restava-me apenas a observação, o testemunho, o recordo das idas e vindas de pessoas que nem pensavam nas suas idas e vindas, dado o seu estado automático de tomar decisões.

Acho que também escrevo para sair do automático.

sábado, 9 de abril de 2011

As três damas

Conto agora a lenda da origem das 3 Damas, as mais belas e artes que um dia haverão de existir.

*

No princípio o mundo era etéreo. Não havia luz, água, terra ou ar. Tampouco morte ou vida. O espaço era tomado por absolutamente nada ao seu redor ou interior. Justamente por nada tomar tudo, tudo era tomado por nada. Todo o espaço do universo era ocupado. Ninguém clamava por revolução porque não havia necessidade. Tudo era atendido e todo o esforço compensado. Não se sabia se se poderia voar ou andar, visto que, à época, ambos eram a mesma coisa. Tudo era igual e diferente, pois não havia noção de separação. Tudo começava e terminava no mesmo lugar e no espaço. Não havia fronteiras e nem portas. Tudo era tudo e nada.

Não havia vida mas dois seres habitavam neste mundo: Música e Poesia.

Música vivia de acordo consigo mesma. Como não existiam necessidades de acordos, vivia em paz. Não tinha forma porque era dotada da capacidade de tomar a forma que quisesse. Poderia ser escorregadia como um rio - e nisso incorporava toda a substância do seu mundo, ao evidentemente não saber onde começava e terminava sua essência - ou sólida como sua vontade de ser arte. Não detinha real conhecimento do que efetivamente era um sólido, pois não havia parâmetros. Julgava o que poderia ser algo sólido tomando que deveria haver algum oposto para o que ela própria era. Se poderia ser rio, poderia também ser o contrário de rio, mesmo não fazendo a menor ideia do que isto fosse.

Poesia, pelo contrário, sempre se sentira deslocada. Nunca soube o porquê: nascera com esse deslocamento e, por tê-lo sentido sempre, incorporara-o à sua personalidade. Passara a acreditar que parte de si mesma era deslocada porque assim era para sê-lo. Não em um estado de descontentamento, visto que aprendera a lidar com o sentimento. O que lhe faltava era um corpo. Já Música não sentia falta de nada. Caso sentisse, seria do tato. Às vezes ousava dizer que parecia estar sentindo um formigamento, olha, Poesia, parece que vem algo subindo, subindo por mim e dá assim uma comichão, sabe, você não tem isso também? E Poesia dizia que não, criatura, pareces querer amargura, nem corpo tens e porém te perdes em matéria.

Em qualquer dia - ou qualquer noite, já que não havia diferença -, Poesia dirigiu-se à Música e falou-lhe

Mas que coisa engraçada isso
Que não sem força é que me toma
Pareço criar braços e um cérebro
Aliás, como penso se não faço por pensar
Como vivo se não tenho por viver
Só quero escorrer por ribeiras sem degraus, ah
Acho que estou me debatendo

Era a revolução lhe acometendo outra vez. Agora, no entanto, era diferente: parecia-lhe que leves linhas de contornos se mostravam ao redor, palidamente delineando-lhe cabelos, dedos, tronco, nariz, pés, sexo. Estava prestes a transcender. Chamou rápido pela Música, que lhe fizesse companhia ou ao menos lhe desse as mãos, a Música disse "mas não tenho mãos...", Poesia disse que não interessava e beijou-lhe os lábios. Lábios que não existiam, visto que não havia matéria. Ou havia? Poesia apenas fez um bico e beijou o nada à sua frente. Como o nada era tudo, compreendia estar beijando a Música. Era preciso descarregar a energia da revolução, que, sabia, precisava ser direcionada para fora. Foi um beijo demorado, carregado de energia carnal e espiritual e a alma que ambas não sabiam deter. Enquanto se beijavam, Música tomou traços. Eram traços mais leves do que os da Poesia, porque enquanto para esta era essencial a forma, para a outra o principal era o conteúdo. Assim, Música fechou-se em sua palidez para concentrar todo o tato que poderia deter.

Teve-o ao máximo.

Música queria um corpo para viver e poder se libertar, Música precisava de limites materiais para dar seu tom máximo, sua maior sinfonia e fazer suas notas ressoarem. Poesia, na outra via, queria libertar um pouco da forma factual que não tinha mas que, apesar disso, não a evitava de sentir comichões diárias (semanais? centenárias?) lembrando-a do que não conhecia.

Naquele momento, e talvez em todos os outros momentos, pois não havia medida de tempo, Poesia e Música se amaram, cada uma descobrindo o corpo da outra em uma exploração quase que unicamente selvagem, porquanto uma não se sabia. Uma não se sabia mas em duas haveriam de saber-se. Ambas se amaram pelo Resto dos Tempos, em mistura de gozo e lascívia.

*

Muito tempo depois (ou talvez apenas um segundo) veio Alguém fazer alguns cálculos. Se o Resto dos Tempos era o tempo da Poesia e da Música, bastava subtrair isso da Grande Era para fazer nascer a Nova Era, que as duas criaturas agora corpóreas estavam prestes a conhecer. O ponto de virada começou com um diálogo em tom de suplício, ao Poesia dizer

Música, dá-me tua mão,
Sinto algo forte que senão
Vieres
Eu temo padecer
Uma comichão gigante aqui no meio
Nisto que fica entre o sexo e o peito
Não sei o que é, Música
Uma comichão bem forte
Não sei dos meus limites
Acho que hão de se expandir, ai ai
Tem alguma coisa dentro de mim que quer falar
Está louca para dar a sua palavra
E que querida, vontade de gritar que ela tem
Acho que hei de repartir-me em duas.

Poesia estava dando à luz. Música confortou a outra da maneira que pôde. Cantou algumas canções e tocou alguns acordes. Posto que seu corpo era fraco, fraco, a que estava a parir quase não ouviu. A surdez e desconexão de ambas fez com que Música chorasse e chorasse de amargura, lembrando-se do motivo de querer tato e corpo. Apesar de ser música, não tinha matéria forte para ressoar. Então era toda só assovio, uma pequena sedução em movimentos calmos. Nas farturas, como no momento de comichão da Poesia, seus acordes valiam em nada. E chorou e chorou, não saíam lágrimas pois não havia matéria grossa o suficiente para suportá-las, então só ecoavam sons fracos através da matéria fraca das duas damas etéreas. Chorava e consolava a outra, a amada, a amargurada. Poesia se compadeceu, apertou forte a mão da companheira. Para a momentânea alegria de ambas, Música ficou com o tato aguçado, podendo sentir o toque daquela que estava a par(t)ir. Poesia chorou e chorou, suplicou à Música que amasse aquela que viria, como se fosse nossa mãe mesmo sendo nossa filha, como se fosse tu e eu juntas, unindo nossos desejos e forças e tristezas, canta uma cançãozinha para mim, querida? A querida cantou uma estrofe boba, boba, dizia

minha querida, quando vais cantar
eu quero ser o teu prodígio
se queres ser, quero te ver dançar
como teu filho

E cantou cheia de alegria e tristeza vendo a outra morrer. Inerte em braços pálidos, Poesia tombou, ainda que a canção não cessasse. E não cessou: Música cantou e cantou, chorou e chorou, quanta amargura em um ser sem corpo. Em meio ao pranto, viu uma vermelhidão do ventre da morta, que coisa engraçada, pensou, e sentiu no seu próprio corpo uma coceira. Começou a passar a unha naquilo que hoje chamam umbigo -  mas que ninguém tinha, pois nunca houvera cordão umbilical para cortar. Coçou e continuou cantando, como se sentisse um dever de manter o canto. Conforme entoava, coçava mais forte e mais forte, as unhas crescendo cada vez mais porém inquebráveis, o que raios era aquilo não sabia, só sabia coçar e coçar. Aos poucos, abriu-se uma pequena feridinha, crescendo cada vez mais. Do ventre saiu uma flor, que, após um áspero passar de unhas, tombou(para o chão? infinito?). Música continuou cantando e a flor se mexendo.

Mexia-se e mexia-se e a cada rebolar crescia um pouco, as pétalas alargando negras para cair em cabelos, cálice e corola proporcionais, raízes como pequenos pés quentinhos saindo do forno em ritmo, um pé na frente do outro, depois levantava, pulava e movia seus cabelos conforme o acorde da mãe. Era a filha Dança nascendo, fruto das vontades das mães, ambas fusionadas em uma que, no futuro, seria a rainha do universo.

Epílogo

Música viveu o resto e soma de sua passagem amando a filha bela, a compassada, vendo em cada passo o seu ritmo e em cada feição uma palavra da Poesia. Dança, filha órfã mas muito bem amada, cresceu aos moldes da mãe, apesar do estilo próprio. Poesia morreu bela e jovem. Seu maior pesar foi, pelo resto da eternidade, só ter sido realmente desvendada pela Música. Nunca deu frutos ao futuro, e nem nunca dará, tendo o destino a sentenciado para ser desconhecida.

Só fez influência à amada e à filha, que, infelizmente, nunca conheceu.

domingo, 3 de abril de 2011

Indiferença é solidão

Daí que o texto dizia "el bienestar y no el estar es la necesidad fundamental para el hombre, la necesidad de las necesidades", só que não, não é assim, o que a gente precisa é estar. Estar vivo, estar presente, estar em si e para os outros, estar para o estar dos outros. Não há como estar bem sem primeiramente estar. Ora, nisto se coloca fundamental a aprovação dos outros, reconhecendo o nosso estar. Os olhos do outro se mostram fundamentais ao se dirigir em nossa direção e se deter em nossos contornos.

Porque dói, dói quando olham sobre nós e o olhar nos atravessa, como se fôssemos invisíveis. E quem quer ser invisível? Ninguém quer, visto que hoje ser invisível é não existir. Quando mais aparecermos, melhor; quanto mais contas em Orkut, Facebook, Twitter e MSN, perfeito. Não estar em uma dessas redes é estar ausente, e estar ausente é nada mais do que não existir em determinado momento. Dói desaperecer e não existir. Talvez por isso a rejeição nos marque a carne, pois é como se a pessoa não reconhecesse nossa existência, menosprezando nossa presença e ideais e certezas e risadas - toda a complexidade do nosso ser. Indiferença é a pior coisa, a pior maldade: os mais cruéis da história queriam encerrar a existência daqueles que odiavam. Todos queriam acabar com o estar dos outros.

Indiferença é crueldade porque tenta fechar os olhos, na esperança de que com isso ocorra o mesmo que se o outro fosse invisível e não merecesse nossa atenção. Cada ato indiferente é um ato cruel, de um pequeno ditador que procura controlar a existência daqueles que lhe desagradam. E quantos haverão de desagradar?

É preciso combater o egocentrismo de achar que todos vão nos agradar sempre.