Deu vontade de falar sobre o Rio de Janeiro: toda essa desgraça, esse nojo que dá de os jornais mostrarem como se o bem tivesse triunfado sobre o mal, que agora as cidades estão salvas e todos podem voltar às suas vidas normais. Mas não entendo muito de política, então fiz um texto com umas coisas que pensei.
Há muito tempo, uma amiga me falou sobre um conhecido que trabalha no BOE (Batalhão de Operações Especiais). Numa batida na casa de um traficante, encontraram somente a mulher do cara. O pessoal do BOE perguntou onde estava o bandido. Ela disse que não sabia. O conhecido da minha amiga pegou a cabeça da mulher e bateu cinco vezes na parede. Na sexta, ela disse que tinha lembrado onde ele estava. Falou toda errada porque ficou com o nariz quebrado.
Comentei para minha amiga que achei um exagero. Ela respondeu que a mulher era uma vagabunda, que compactuava com tudo, e eu não tinha que ter pena. Não era pena o que eu sentia, mas não achava muito certo o que o cara do BOE fez. Comentei sobre isso com um amigo que faz Filosofia, que disse que a polícia é isso, que não se importa em fazer sofrer ou não, que a sua função é manter a ordem. Não os policiais, mas a Polícia. Acho que não só a ordem, mas o silêncio também. A calma. Faz meses que tivemos essa conversa, mas eu ainda penso nisso.
Primeiro porque precisamos pensar o que é a ordem. O que a define, o que a compõe. A ordem, por si só, não existe. É abstrata. Sua existência depende de nós. Nós é que encarnamos a ordem. Nós é que fazemos a ordem. Não é a Constituição Federal, o Código Civil que a fazem. Eles são somente livros que nos guiam. Assim como os xiitas usam o Alcorão para pautar sua cultura, costumes e leis, nós encarnamos a Constituição e nela é que pautamos nossas ações. Se o Lula fizer uma emenda e disser AGORA CÊS PODEM COMPRAR UM BECK, a ordem muda. Um novo valor passa a ser incorporado, e a polícia não vai mais caçar aqueles que compravam maconha.
A ordem é algo como uma geléia. Um monstro-geleia. Quando requisitado, deforma-se e engole o alvo. Isso me parece um pouco horrível, porque dá a impressão de que a polícia é um agente de sustentação da nossa alienação, já que caça a diferença, o fora da Ordem, e deixa livre quem com ela concorda. Porém esse viés de enxergar a polícia como aqueles agentes carecas do Matrix é meio surreal, né? A polícia é só repressão?
Zigmunt Bauman é um teórico que diz que a nossa sociedade se divide entre os estranhos e os incluídos. Incluídos somos nós, classe média compactuante com o sistema, que paga imposto, vai para o colégio, faculdade, shopping, praia etc. Excluídos são todos aqueles que não seguem a ordem - e fogem à regra. Os loucos, os ladrões, os que moram em favelas, os índios etc. A sociedade, em busca da ordem, tem duas maneiras de lidar com os estranhos:
- Maneira antropofágica: aniquilá-los, devorá-los e regurgitá-los de volta, adaptados e assimilados. Nike e adidas ae.
- Maneira antropoêmica: banindo-os dos limites do mundo modelo e impedindo a sua comunicação com quem nele mora. A mídia entra aí para mostrá-los com um viés policial, de banditagem e pouco humanístico ou até mesmo absurdo - vide costumes indígenas. Segundo a série Ser ou Não Ser, do Fantástico, o Focault também fala disso. Diz que excluímos os estranhos para eles não influenciarem outras pessoas na busca da ordem.
Desenvolvendo este raciocínio, a polícia é um agente de sustentação de alienação. Sustentação porque caça a diferença, o fora da Ordem, e deixa livre quem com ela concorda. Voltando: a polícia é só repressão? E a ordem? O que ela é? Quem tem direito de dizer que é isso e não aquilo?
Enfim. Se a maconha é liberada para compra e venda, a polícia não prende mais quem faz isso. Os compradores tornam-se incluídos. É o monstro-geleia se adaptando. A polícia é um dos braços deste robô. Ela tem um radar, acionado pelo monstro. Quando o governo muda uma lei, o monstro modifica-se, manda uma nova versão do programa para a polícia-robô, que não ataca mais as pessoas que compravam maconha. Os compradores agora têm o privilégio de serem, por agora, poupados pela polícia-robô. Os agentes da alienação deixaram você viver.
É um pouco apavorante crer que nossa segurança está nas mãos de uma corporação assim. Ela é volátil, no fim, porque é parte de um monstro que se adapta o tempo inteiro. A geleia é o fim: decifra-me ou devoro-te. Assimila-te ou exclui-te. A diferença não tem lugar nisso. Aliás, ela não tem lugar nem na cabeça das pessoas. A maioria adora dizer que não é preconceituosa e caralho a quatro. Queria ver se todo mundo ficaria normal se um travesti viesse bater papo. A diferença é defendida por todo mundo, porém a maioria, no fundo, não gosta quando a diferença é distinta dos seus próprios conceitos.
Enfim. A ordem, na verdade, não existe. Nós a incorporamos. Nós a incorporamos contudo ela nos controla. O sistema todo é algo assim: um vírus que não existe, mas que comanda tudo. Esse texto tenta fazer refletir até que ponto a ordem é-nos positiva. Você não teme ficar fora da ordem? Imagina se amanhã o governo baixa um catatau de emendas que te enquadram como um estranho. A partir de hoje, quem tem tatuagem será preso. Quem escuta música com mais de dois minutos, fica por 11 anos na cadeia. Não dá uma sensação estranha? Imagina se amanhã todo o teu ser é estranho, e resta a ti ser assimilado ou excluído?
Ao cabo e ao rabo, nós todos somos, em realidade, reféns uns dos outros. Porque contamos com a piedade e misericórdia de que o outro nos aceite e considere-nos normais, não nos julgando como estranhos. Assim não somos expulsos da sociedade e vivemos felizes nela. Talvez aí se explique o porquê de nos irritarmos com as diferenças. Todo o ato libertário é dotado de contestação, de questionamento à ordem vigente. A nossa reação é recriminá-lo, porque no momento em que podamos a diferença, a geleia não se transmuta e continuamos sabendo o que ela requere de nós. Ao saber como devemos nos portar, efetivamos as suas exigências e continuamos incluídos. A ordem não muda, e nós seguimos sabendo o que ela de nós exige.
Falei tudo isso para chegar ao Rio, mas nem sei mais o que ia falar. Hn. Até que ponto é bom para a sociedade meter tiro nos traficantes? Excluí-los já é horrível: matá-los não é pior? Aliás, alguém ainda acha que matar é a solução? Quem tem o direito de tirar a vida do outro? Por que no momento em que você mata, você assume que a sua vida é tão mais importante do que a do outro, que ele merece morrer, e você não. Se você é o carrasco, é ainda pior, porque nas suas mãos é efetivada a maior prepotência do mundo: dizer sem nenhum som que sua vida é, sem dúvida, mais cara do que a do outro. Claro que eu não falo isso nos casos de autodefesa. Aliás, parece até que eu estou defendendo traficantes, mas não, só estou vendo-os como seres humanos. O maior dilema é tentar realmente incluí-los (eles e todos os outros estranhos) não só com Bolsa-Família, cotas e afins. Não que tais programas sejam ruins, mas todos sabemos que sozinhos não resolverão nossos problemas (sim, filho, filha, são nossos problemas também). Como efetivamente incluir um grupo que está à margem, porém tão grande, que se uniu a ponto de meter medo nos que estão ao centro?
A maior ironia de tudo isso é que nós, incluídos, trancamos os estranhos dentro de presídios, manicômios e reservas. Agora, os estranhos estão nos trancando dentro de casa com medo da violência. Quem é estranho e quem não é agora? Começou a reação de um grupo social que ninguém dava a mínima. Acho que esqueceram que o ser humano precisa de reconhecimento externo para ter certeza de que sua existência é factual. O quanto mais cedo reconhecermos que os excluídos, têm, sim, problemas de verdade, melhor. Aliás, aí está outra prepotência nossa: pensar que os problemas do outro não são tão difíceis. Isso se manifesta na psique de uma pessoa tanto quanto na sociologia de um grupo.