Ele: não entendo.
EEle: nem eu.
Ele: começando por nós
EEle: dois. Estando
Ele: juntos sem estar mesmo
EEle: ligados. Não entendo o que a gente
Ele: tem para falar. É só ficarmos
EEle: quietos, sabe. A palavra é só
Ele: palavra. O silêncio também é.
EEle: Cegos-surdo-mudos também se
Ele: comunicam. Acho que por
EELe: silêncio? Será? Não conheço alguém
Ele: assim. Meu nome é Mentira.
EEle: Meu nome é Verdade:
Mentira: Decifra-me ou
Verdade: devoro-te.
Mentira: vc é muito difícil.
Verdade: não sou realmente fácil.
Mentira: se sou mentira, então as minhas verdades são mentiras?
Verdade: verdade.
Mentira: Então não posso falar sério. Opa, não: ninguém me leva a sério.
Verdade: por quê?
Mentira: Porque as minhas verdades são mentiras, e minhas mentiras verdades, que paradoxo
Verdade: feio. Isso quer dizer que não falo mentiras. Ou que minhas mentiras são verdades.
Mentira: mentira. Vc
Verdade: entendeu? Sim. Acho que não vamos dar certo pq
Mentira: sempre vou falar mentiras e vc
Verdade: verdades. A gnt pode compensar um ao outro. O défcit de um
Mentira: suplantando o do outro. Porém.
Verdade: É muito complicado. Porém
Mentira: gosto de complicado.
Verdade: É.
Mentira: É.
...
Verdade: Adeus.
Mentira: (sorriso sem mostrar os dentes)
Ambos caminharam. Anos depois, cruzaram-se na rua, mas não se cumprimentaram achando que o outro não se lembraria.
sexta-feira, 30 de julho de 2010
terça-feira, 27 de julho de 2010
Liquidificador
(O amor não ama mais
As coisas boas pois
Não sente o que é pra ser
Sentido. No amor,
Tudo é sem sentido
Sem ter tido
Qualquer coisa.
No amor não se tem,
Apesar de se sentir.
Tudo é falso,
Exceto o amor
De se ferir.)
ELE: O amor não existe, minha cara, é preciso abrir os olhos para enxergar isso e ater-se ao fato de que eu e você somos como aquela velha salada de frutas em que a gente bota açúcar pra sair mais caldo mas nem caldo sai mais, as frutas de tão velhas se tornam murchas e nem lembram daquele aspecto bonito que tinham na feira quando o feirante dizia que pegasse, meu bom jovem, tá novinha novinha. Pois é, nós dois somos uma velha salada de frutas, não adianta colocar nenhum açúcar pois não há caldo que saia, é preciso aceitar que talvez o feirante tenha se enganado, era uma boa fruta, sim, mas agora já está velha, compreende, por que guardar uma fruta velha que a gente nem pode comer, que só serve para olhar e lembrar de algum tempo em que era bela e que se admirava, você me entende, tem coragem de comer uma salada de frutas velha?
(Uma salada de frutas velha.
Velhas frutas murchas
Pra comer.
Sentir o ácido sabor
De uma lembrança,
Que de ácida,
Corrói meu ser. Que de forte
Faz-me temer
Lembrar de outras tantas lembranças
Compartilhadas com você.)
ELA: O amor existe, meu caro, é preciso fechar os olhos para enxergar isso e ater-se ao fato de que
sim, velha salada de frutas
é que somos. Velha
piada suja é que ouço de sua voz,
que ainda me é doce. Que ainda
me faz doce serenata de amor. É que você se esquece na feira há, sim, muitos feirantes berrando que leve esta, prove aquela, mas nada é obrigatório pois não se paga para entrar e se pode ficar horas pesquisando as frutas, você pega a que quiser, a culpa não é da fruta se o feirante pressionou alguém a comprá-la. Contudo o feirante deixa ali, esperando que ninguém veja. Cada um pega a fruta que quiser.
Você não
E Entendeu. Eu disse
L Que a fruta é velha. E velha
E É a salada de frutas
De uma fruta velha
ELA: Minha mãe pega bananas velhas, assim, quase pretas, coloca no liquidificador com Nescau e faz uma batida que eu e meu irmão adoramos, fica uma batida gostosa feita com velhas frutas.
ELE: Não gosto de batida de banana.
(O amor não ama mais
As coisas simples. Porque
Nada é simples
Neste todo complicado.
Complica tudo
Neste todo separado. Se separa tudo
Em cada parte misturada.
O amor não ama mais
As coisas simples. Porque
Nada é simples.
Para quem
Se habilita
A complicar.)
ELE: O meu amor não ama mais o teu amor.
ELA: E já se amaram?
ELE: Já. O meu amor
já amou o teu
amor. Já ficou
sentindo o sabor:
acho que o sabor de coisa simples
da tua coisa
complicada.
ELA: O nosso amor já foi coisa misturada.
As coisas boas pois
Não sente o que é pra ser
Sentido. No amor,
Tudo é sem sentido
Sem ter tido
Qualquer coisa.
No amor não se tem,
Apesar de se sentir.
Tudo é falso,
Exceto o amor
De se ferir.)
ELE: O amor não existe, minha cara, é preciso abrir os olhos para enxergar isso e ater-se ao fato de que eu e você somos como aquela velha salada de frutas em que a gente bota açúcar pra sair mais caldo mas nem caldo sai mais, as frutas de tão velhas se tornam murchas e nem lembram daquele aspecto bonito que tinham na feira quando o feirante dizia que pegasse, meu bom jovem, tá novinha novinha. Pois é, nós dois somos uma velha salada de frutas, não adianta colocar nenhum açúcar pois não há caldo que saia, é preciso aceitar que talvez o feirante tenha se enganado, era uma boa fruta, sim, mas agora já está velha, compreende, por que guardar uma fruta velha que a gente nem pode comer, que só serve para olhar e lembrar de algum tempo em que era bela e que se admirava, você me entende, tem coragem de comer uma salada de frutas velha?
(Uma salada de frutas velha.
Velhas frutas murchas
Pra comer.
Sentir o ácido sabor
De uma lembrança,
Que de ácida,
Corrói meu ser. Que de forte
Faz-me temer
Lembrar de outras tantas lembranças
Compartilhadas com você.)
ELA: O amor existe, meu caro, é preciso fechar os olhos para enxergar isso e ater-se ao fato de que
sim, velha salada de frutas
é que somos. Velha
piada suja é que ouço de sua voz,
que ainda me é doce. Que ainda
me faz doce serenata de amor. É que você se esquece na feira há, sim, muitos feirantes berrando que leve esta, prove aquela, mas nada é obrigatório pois não se paga para entrar e se pode ficar horas pesquisando as frutas, você pega a que quiser, a culpa não é da fruta se o feirante pressionou alguém a comprá-la. Contudo o feirante deixa ali, esperando que ninguém veja. Cada um pega a fruta que quiser.
Você não
E Entendeu. Eu disse
L Que a fruta é velha. E velha
E É a salada de frutas
De uma fruta velha
ELA: Minha mãe pega bananas velhas, assim, quase pretas, coloca no liquidificador com Nescau e faz uma batida que eu e meu irmão adoramos, fica uma batida gostosa feita com velhas frutas.
ELE: Não gosto de batida de banana.
(O amor não ama mais
As coisas simples. Porque
Nada é simples
Neste todo complicado.
Complica tudo
Neste todo separado. Se separa tudo
Em cada parte misturada.
O amor não ama mais
As coisas simples. Porque
Nada é simples.
Para quem
Se habilita
A complicar.)
ELE: O meu amor não ama mais o teu amor.
ELA: E já se amaram?
ELE: Já. O meu amor
já amou o teu
amor. Já ficou
sentindo o sabor:
acho que o sabor de coisa simples
da tua coisa
complicada.
ELA: O nosso amor já foi coisa misturada.
sábado, 24 de julho de 2010
Poderia
Acordei hoje e vi o resquício de um sonho meu. Não sei o que era mas na hora pensei que há muito tempo não lembro de sonhos meus, bem que poderia ter sonhos loucos daqueles em que temos super-poderes voar atravessar paredes sei lá. Acordei e pensei que se sonhasse seria algo como
ele correu por uma rua escura escura escura não só da noite mas também escura de vida, não tinha vida não tinha nada, a luz que tinha era de um poste que parecia ser alimentado a óleo de baleia, só isso, uma baleia morreu para dar-me luz, ele pensou, Ele pensou mas a baleia não pensava mais. Correu pela rua escura com um diâmetro de cinco metros, como aquelas ruas de Veneza em que nem carros como Uno conseguem passar, passa gente magra, passa gente gorda mas duas delas talvez não. Ele correu correu porque tinha que correr não era pressa era mesmo fuga de algo que não via, só sentia como: se uma mão de sombras andasse atrás no mesmo passo, não poderia ser a sua sombra porque estava tão escuro que era preciso que uma baleia morresse para iluminar o ambiente. Correu até que chegou a uma cerca mais do que enferrujada era puro tétano e não havia o que fazer além de pegar tétano. Parou e virou-se costas e tocou a grade com as mãos e disse, é agora: uma lufada de ar veio em seu corpo (primeiro os cabelos voaram) depois sentiu a carne queimar como se mil formigas mil insetos estivessem a lhe picar, ele disse, não!, e de repente suas pernas viraram pernas de tigre: conseguiu dar um pulo que de tamanho pulo contornou a grade. Correu mais mais tinha pernas de tigre e nem olhava para os pelos as unhas grandes que riscavam o chão, pensou, se minhas unhas riscam o chão faço como João e Maria deixando meu caminho pela rua se me matarem se me acharem vão saber de onde vim e para onde ia verão que fui apenas alguém que correu desesperadamente para salvar a vida e por algum motivo que espero que descubram morri mataram-me às quatro da manhã. A mão de sombras vinha atrás, implacável e esperta, de tão rápida parecia imóvel como aquelas coisas: aqueles movimentos que são tão rápidos que se pensa que estão parados e fazem pensar em alguma tese de física quântica que diga que é tudo relativo, o referencial, o sujeito e o objeto, tudo depende de você, meu caro minha cara, o mundo é para se engolir. A mão seguia, Ele corria, a rua não acabava e os postes iluminavam: cansou de correr, o Instinto dizia, não há tempo para parar não há tempo para pensar é por isso que sou eu quem falo agora só lhe resta correr desenfreadamente miraculosamente escaparemos do desastre eu e você instinto e razão um auxiliando o outro sempre ao lado um dia a guerra acaba (porém eu hei de vencer), tudo isso o Instinto disse, então Ele respondeu, razão e instinto, qual me ajudará?, e o instinto disse, deixe-me tentar, Ele disse "vá em frente", Instinto respondeu: vá você - e instantaneamente não eram somente pernas de tigre mas Ele todo se tornara um tigre, não mais correndo mas aquilo que os tigres fazem, que quando os cavalos fazem chamam "galopar", o Tigre tigreleava pela rua escura iluminada por postes que pareciam abastecidos a óleo de baleia se: fosse Ele, teria pensado "tantas baleias tantas baleias mortas para iluminar meu caminho numa noite escura num lugar em que não sinto almas não sinto auras je ne sais pas what's going on porque essa luz não apaga a sombra que me persegue mão negra em todo meu percalço morre morre muera hija del diablo todas essas baleias mortas quantos cadáveres ó meu Deus tanta morte para dar-me chance à vida se não fosse esta luz eu estaria sem luz cadê a luz da minha vida", porém agora era Tigre e não pensava. Correu tanto que chegou a outra cerca, porém tão alta que nem mesmo um pulo de tigre a ultrapassaria. Instinto: - deixa-me te ajudar outra vez. Tigre: - rawrrrrr (não quero pois antes corria menos porém pensava mais agora sou um tigre e corro tanto que fugi da consciência). Instinto: - De que lhe adianta consciência se te tornarás morto. O Tigre concordou, cedeu mais um pouco de sua consciência, disse "rawr (salva-me daquilo que não tem salvação)". Ficou leve leve pequeno mas tão indefeso quase inocente, tentou correr mas deu dois pulinhos, quando viu era um pássaro. O Pássaro bateu as asas e contornou a grade a tempo de fugir da sombra. Voou alto alto alto tão alto que a vista era de uma beleza tão absurda que não se grava na lembrança a vista, mas o sentimento que se tem ao vê-la, se fosse Ele, pensaria "que vista absurda é tanto para os meus olhos minha vista minha cabeça vai explodir com tanta informação esses prédios com escritórios com gente trabalhando pensando fazendo o mundo mover enquanto a maioria está imóvel em suas camas já no sétimo sono sonhando com o dia em que elas estão na praia com algum famoso para falar para a família que 'nem te conto, sonhei que estava numa praia paradisíaca com aquele ator que foi pego com cocaína, sabe aquele que se drogava e foi preso no loft, ai como queria ter um loft só com divisória no quarto e no banheiro, todo mundo vendo eu cozinhar e a minha sala e minha tv de 51 polegadas e aqueles quadros que comprei em Buenos Aires', tantas família juntas decerto há algum recinto em que há um assaltante fazendo inocentes de refém, numa cobertura um casal trepa até se arregaçar em outra um homem esfaqueia a mulher a fazendo cair na piscina, se fosse Ele, pensaria em tudo isso, porém agora era um Pássaro e só queria ir para o ninho.
Poderia sonhar com isso, mas não sonhei, só acordei de manhã e pensei na vida.
sexta-feira, 23 de julho de 2010
Cachorros
Cachorros pensam,
Tentam não tentar.
Passam por querer. Cachorros
Ficam sem estar
Com sua presença.
Cachorros estão sem mesmo estar.
Alguém me diz, por favor
Por que cachorros também pensam
Por que cachorros
Não comigo falam? Por que
Eu falo com cachorros?
Alguém me diz, por favor,
Por que sabem que bebês não sabem
Que são bebês, mas não sabem
Se cachorros sabem ser cachorros?
Você entendeu? Por que
Sabem que bebês são bebês
E fazem coisas de bebês, mas cachorros
Não param de ser gatos? Digo, cachorros,
Não conseguem estar calados.
Alguém me diz, por favor, nem precisa
Ser em poesia.
Quero prosa,
Prosa-poesia, todo dia
Do café da manhã ao chá da tarde. Quero amor.
Amor de gente fina.
(Não de posses).
Amor de quem se torne
Poesia.
Tentam não tentar.
Passam por querer. Cachorros
Ficam sem estar
Com sua presença.
Cachorros estão sem mesmo estar.
Chovia fraquinho fraquinho e nem guardachuva eu tinha, porém para que se proteger de uma chuva que só quer se fazer notar, dessas chuvas que molham sem molhar. Olhei para cima para ver a cor dos prédios e pisei numa laje solta, disse, agora to todo molhado, me abaixei para fazer uma barra na calça, e um cachorro a puxou com sua boca. Levei um susto, assim como o cachorro, que deu um grito de medo medo medo fiquei com medo mas ao ouvir o seu grito me senti mal e me abaixei, disse, own desculpa, amigo, e ele voltou para mim, acho que quis puxar a minha calça de novo, contudo não permiti, era um cachorro simpático porém com ele não tenho intimidade para ficar assim me tocando. Comecei a caminhar, e ele veio atrás, pensei, não não, agora é capaz de ele se magoar quando tiver que ir embora - será, será mesmo que ele se magoaria, pois nem sei, provavelmente não estivesse nem aí mas ainda penso que cachorros também pensam. Entrei no Mc Donald's, peguei uma casquinha e quando vi, o bicho estava sentado me esperando. Ou impressão minha, pensei. Pus a mover-me, e ele assim também o fez, seguindo meu lerdo passo. Parei no sinal vermelho e ele não: quase morreu, e, depois disso, foi-se embora. Tanto faz tanto fez: só sei que lembro de ler que não lembramos de quando éramos bebês porque não podíamos descrever as situações, seja com gestos ou falas: mas como cachorros lembram se também não se descrevem? E sabem que quando se pega a chave, é porque se vai abrir a porta, que quando se pega a coleira é porque se vai passear. Alguém me diz, por favor?
Alguém me diz, por favor
Por que cachorros também pensam
Por que cachorros
Não comigo falam? Por que
Eu falo com cachorros?
Alguém me diz, por favor,
Por que sabem que bebês não sabem
Que são bebês, mas não sabem
Se cachorros sabem ser cachorros?
Você entendeu? Por que
Sabem que bebês são bebês
E fazem coisas de bebês, mas cachorros
Não param de ser gatos? Digo, cachorros,
Não conseguem estar calados.
Alguém me diz, por favor, nem precisa
Ser em poesia.
Quero prosa,
Prosa-poesia, todo dia
Do café da manhã ao chá da tarde. Quero amor.
Amor de gente fina.
(Não de posses).
Amor de quem se torne
Poesia.
sexta-feira, 16 de julho de 2010
Falta só o chá para a tea party
As pessoas reclamam que faltam prisões, que o Governo é relapso e precisa construir mais e que os presidiários não têm onde ficar. Porém eu não entendo pois todos vivemos na maior prisão já construída: só que é invisível, e a maioria não se dá conta.
Minha mãe disse, pega sol
para fixar as vitaminas. Fiquei quieto,
e pensei que não posso pegar sol, porque
fixa em mim aquelas lembranças de quando éramos
um a um
igual a mais do que dois, quando
juntos éramos
bem maiores que sozinhos
(e vivíamos a Gestalt). Quando juntos,
sol e lua,
terra e água. Céu e céu. Pois
duas cabeças nas nuvens sempre batem
em aviões.
When the wind
goes by
and refresh our minds.
Minha mãe disse para eu pegar sol, e eu não fui, porque sei que o sol fixa em mim muito mais do que poucas vitaminas.
e pensei que não posso pegar sol, porque
fixa em mim aquelas lembranças de quando éramos
um a um
igual a mais do que dois, quando
juntos éramos
bem maiores que sozinhos
(e vivíamos a Gestalt). Quando juntos,
sol e lua,
terra e água. Céu e céu. Pois
duas cabeças nas nuvens sempre batem
em aviões.
When the wind
goes by
and refresh our minds.
Minha mãe disse para eu pegar sol, e eu não fui, porque sei que o sol fixa em mim muito mais do que poucas vitaminas.
quarta-feira, 14 de julho de 2010
Negro Manuel
Andava pela rua e encontrei na calçada uma pichação que dizia não precisamente mas algo parecido, NEGRO MANUEL ESTRUPOU TEU FILHO DE CINCO ANOS E TUA MULHER BOTOU NA CADEIA DOZE ANOS AGORA PAGA, e eu pensei, Negro Manuel, por que estupraste teu filho de 5 anos? pois qual era o motivo pois estavas desiludido com a vida e esqueceste que era teu filho embaixo do teu corpo? Negro Manuel não pensou que em um gozo era decretada a explosão das bases de uma vida que a recém era construída e que as gotas de suor que caíam nas costas do filho eram transformadas em ácido clorídrico, marcando para sempre a pele de uma criança fadada ao trauma, culpada senão por viver e servir de bode expiatório à frustração de um negro que não soube com ela lidar. Negro Manuel estuprou o filho de 5 anos, e eu me lembrei da palestra de um médico congolês que no seu país realiza cirurgias plásticas para reconstruir o corpo daqueles que são estuprados por motivo de guerra: crianças de 5 anos não têm mais reto, meninas não têm vagina. O médico disse "e como se constrói a feminilidade de uma criança assim?", ele disse isso e as palavras marcaram minha mente a facadas. "E como lidar com pais que perdem a identidade de pais ao serem estuprados em frente aos filhos?". Pais que deveriam proteger mas são como espantalhos em frente à prole, servindo apenas ao prazer daqueles que necessitam deixar sua marca de vida na mente de crianças inocentes, perpetuando sua existência até onde der. Por meio do gozo estendido é que se instala o grito de EU VIVO no corpo de pais e na memória de crianças. Talvez Negro Manuel quis deixar sua marca no corpo do filho. Andei mais um pouco e encontrei outra pichação, NEGRO MANUEL ESTRUPOU O FILHO DE CINCO ANOS. Lembrei de quando me falaram que estuprador tem que, ou ser estuprado, ou ser enviado à forca. Mas será, será que essa é a saída, será que esse que me falou gostaria de ser julgado assim? Talvez Negro Manuel se atormentasse todos os dias com a latente atração que sentia por crianças: talvez se corroesse todos os dias ao passar por uma escola e ver alunos brincando no balanço: e como saída, restou-lhe violar o próprio filho, tentando libertar os fantasmas de sua cabeça, visto que aguentou tanto que o pouco que viesse lhe matava. Negro Manuel está na cadeia agora, e lá ficará por anos. Por anos será estuprado, porque na cadeia a lei é assim, quem é preso por estupro será por todos estuprado. Há quem dirá que é bem-feito, ele merecia, mas será que ele merecia? Será que ele não merecia, acima de tudo, um tratamento psiquiátrico, pois sei de depoimentos de pedófilos que choraram aos delegados pedindo ajuda, já que queriam livrar-se deste distúrbio porém não conseguiam. Negro Manuel merece cadeia, já que acabou com a vida de uma criança que quem sabe sofria nas mãos de quem sabe um pai autoritário. Mas Negro Manuel também merece acompanhamento. E digo isso tudo sabendo que há alguém que pensará que eu agiria diferente se fosse com meu filho. Pois respondo que não há como saber porque não tenho filhos e eles não foram estuprados, sei que pedofilia é crime mas também algo que necessita ser acompanhado; pedófilos entram em cadeias e saem de lá como pedófilos, quanto tempo demorará até alguém perceber que para que saiam diferentes é preciso agir de outra maneira? Negro Manuel talvez fora estuprado na infância, visto que pesquisas mostram que grande parte de pedófilos foram violados quando pequenos; pode ter tido um pai autoritário que o assediava quando a mãe não estava por perto. A mãe, nestes casos, morre por dentro ao ver que era cega para tudo, que não pode proteger o filho dum mal desses. Tomara que a esposa do Negro Manuel assista o filho, ajudando-o a trilhar um caminho em que violações não aparecem nunca mais, muito menos com o futuro neto. Triste é saber que, apesar de trilhar um novo caminho, o filho de Negro Manuel terá para sempre as marcas ácidas nas costas e costurada à mente a memória cruel de um pai que era pai mas não o era. Negro Manuel conseguiu perpetuar sua existência por muitos anos.
E assim é que se se torna imortal.
E assim é que se se torna imortal.
terça-feira, 13 de julho de 2010
Crônica do perseguido e a dama da noite
Não escrevo há dias textos meus, mas ainda quero que essa Polaroide seja um espaço de reflexão. Enquanto não sair nada de mim, abasteço com o que não é. Para quem não percebeu, quando a escrita é em itálico é porque não é minha.
"Quisera levar tuas mãos. Roubo uma luva.
Dias e Noites de Amor e Guerra, Eduardo Galeano
Se conhecem, de madrugada, num bar de luxo. Ao amanhecer ele acorda na cama dela. Ela esquenta o café; tomam na mesma xícara. Ele descobre que ela rói as unhas e que tem lindas mãos de menina. Não se dizem nada. Enquando se veste, ele busca palavras para explicar que não poderá pagar. Sem olhar para ele, ela diz, como quem não quer nada:
- Não sei nem como você chama. Mas, se quiser ficar, fique. A casa não é feia.
Ele fica.
Ela não faz perguntas. Ele tampouco.
Pelas noites ela vai trabalhar. Ele sai pouco ou nada.
Passam os meses.
Uma madrugada, ela encontra a cama vazia. Em cima do travesseiro, uma carta que diz:
"Quisera levar tuas mãos. Roubo uma luva.
Perdoe. Tchau e obrigado por tudo".
Ele atravessa rio, com documentos falsos. Poucos dias depois, cai preso. Cai por uma bobagem. Estava sendo procurado há mais de um ano.
O coronel insulta e bate. Ergue-o pela gola:
- Vai dizer onde esteve. Vai contar tudo.
Ele responde que viveu com uma mulher em Montevidéu. O coronel não acredita. Ele mostra a fotografia: ela sentada na cama, nua, as mãos na nuca, o cabelo negro deslizando sobre os peitos:
- Com essa mulher - diz. - Em Montevidéu.
O coronel arranca a fotografia das mãos dele e de repente ferve de fúria, dá um murro na mesa, grita "puta que a pariu, traidora filha da puta, vai me pagar, desgraçada, vai me pagar".
E então ele entende. A casa tinha sido uma armadilha, armada para caçar gente como ele. E lembra o que ela tinha dito, um meio-dia, depois do amor:
- Sabe de uma cioisa? Eu nunca senti com ninguém esta... esta alegria dos músculos.
E pela primeira vez entende o que ela tinha acrescentado com uma sombra estranha nos olhos.
- Alguma vez ia acontecer comigo, não é? - tinha dito. - Foda-se. Eu sei perder.
(Isto aconteceu em 56 ou 57, quando os argentinos acossados pela ditadura cruzavam o rio e se escondiam em Montevidéu.)
Dias e Noites de Amor e Guerra, Eduardo Galeano
segunda-feira, 12 de julho de 2010
Morri
Postagem antiga para o Clube da Escrita. Tema: Morri, e agora?:
Morri. E agora?
Vivo a minha morte como antes minha vida? Agora que vivo a morte, ela se torna minha vida e acho que a vida é minha morte. Porque eu antes sempre pensava a morte como “o lado de lá”, aquilo que é inalcançável até que se alcance. E a vida a ser aquilo que eu detinha, que eu vivia. Porém tenho a morte em minhas mãos e isso me leva a um paradoxo pois ela passa a se tornar vida e a vida vira morte. Eu vivo a morte. E depois quem sabe morro a vida. E pensar nisso me leva a perceber na efemeridade do nosso viver que num dia é morte e noutro é vida: em como são etéreas nossas percepções das coisas e pessoas e saberes. Somos egoístas. Porque moldamos todas as leis do universo a nosso modo e todas as ações de tudo tendem a um final: nós. Porque os animais silvestres são enjaulados por poderem nos machucar: culturas são cultivadas para nos alimentar: planetas explorados para fingirmos saciar. Tudo é nós e nós estamos em tudo. E depois reclamos do catastrofismo do universo que responde aos nossos chamados e acaba por nos prejudicar mas é apenas a lógica dos universos, pois se agimos de maneira que tudo tem a ver conosco, tudo haverá de ser conosco. E não entendo, não entendo no catastrofismo ideológico e tampouco no pessoal, há tantos motivos para que nos abalemos, e escolhem as festas ou trabalhos ou os pais, mas em que escala há de sermos egoístas? Morri minha vida, mas penso viver minha morte em paz
Na esperança de que tudo há de se velar
Todos os teus dramas
Tuas feridas
Que agora parecem não cicatrizar
Hão de se fechar
Pensas que tua ferida é grande
Mas a do mundo
É bem maior.
domingo, 11 de julho de 2010
Ana Clara fazendo amor. Lião fazendo comício. Mãezinha fazendo análise. As freirinhas fazendo doce, sinto daqui o cheiro quente de doce de abóbora. Faço filosofia. Ser ou estar. Não, não é ser ou não ser, essa já existe, não confundir com a minha que acabei de inventar agora. Originalíssima. Se eu sou, não estou porque para que eu seja é preciso que não esteja. Mas não esteja onde? Muito boa a pergunta; não esteja onde. Fora de mim, é lógico. Para que eu seja assim inteira (essencial e essência) é preciso que não esteja em outro lugar senão em mim. Não me desintegro na natureza porque ela me toma e me devolve na íntegra: não há competição mas identificação dos elementos. Apenas isso. Na cidade me desintegro porque na cidade eu não sou eu, eu estou: estou competindo e como dentro das regras do jogo (milhares de regras) preciso competir bem, tenho consequentemente de estar bem para competir o melhor possível. Para competir o melhor possível acabo sacrificando o ser (próprio ou alheio, o que vem a dar no mesmo). Ora se sacrifico o ser para apenas estar, acabo me desintegrando (essencial e essência) até a pulverização total. Vaidade das vaidades. Apenas vaidade. A conclusão é bíblica mas responde a todas as perguntas deste mundo desintegrado e confuso. Os loucos reinando sobre os vivos e mortos. Dominarão os poucos que conseguirem segurar as rédeas da loucura, quais?
As Meninas, Lygia Fagundes Telles
sábado, 10 de julho de 2010
Time may change me
but i can't change time.
José Saramago — Eu diria assim, desta maneira muito simples, um ato de escrever é só um ato. Não é nada mais do que isto. Não lhe chamo ato de coragem. Eu sou provavelmente, escandalosamente, prosaico. Não acredito em vocação. Só se pode ter - imaginando que a vocação exista - vocação para as profissões que já existem. Na verdade é a própria necessidade social que vai criando as atividades e as profissões e depois nós vamos para elas. Às vezes, dizemos que fomos para elas porque não tivemos outra solução. Mas, também podemos, somos capazes de dizer, ah, eu fui para isto pela minha vocação. Mas qual vocação? Ninguém pode ter a vocação para a informática antes de a informática existir.
*
Folha — Você considera escrever um ato de que? Você classificaria como o quê esse gesto extremo, coragem?
José Saramago — Eu diria assim, desta maneira muito simples, um ato de escrever é só um ato. Não é nada mais do que isto. Não lhe chamo ato de coragem. Eu sou provavelmente, escandalosamente, prosaico. Não acredito em vocação. Só se pode ter - imaginando que a vocação exista - vocação para as profissões que já existem. Na verdade é a própria necessidade social que vai criando as atividades e as profissões e depois nós vamos para elas. Às vezes, dizemos que fomos para elas porque não tivemos outra solução. Mas, também podemos, somos capazes de dizer, ah, eu fui para isto pela minha vocação. Mas qual vocação? Ninguém pode ter a vocação para a informática antes de a informática existir.
quinta-feira, 8 de julho de 2010
No Casco duma Árvore
Risquei numa árvore
Tu e eu.
A árvore cresceu, e
Eu por lá fiquei.
Eu sou cego
Antes e depois de te encontrar.
Por ser perdido nesta vida,
É que fui cego.
Hoje é de mentira.
É que me faço cego
para te enxergar melhor.
Não te dei perfume ou talvez flores.
Não te dei
Cartão de aniversário. Não
Te dei um tênis novo.
Não fiz coração no dia doze.
Mas ontem, ao me despedir de ti
Senti que algo me faltou.
O ônibus veio
E eu tive de correr.
Tu ficaste esperando
O beijo que não se lançou.
Sentei no banco e te olhei.
Chorei por não ter dado o beijo que te pertencia.
O beijo que tu merecias.
O beijo que confirmaria:
E e tu
No casco duma
Arvore.
Tu e eu.
A árvore cresceu, e
Eu por lá fiquei.
Deixa ele explicar: não, espera, eu falo direitinho, era ontem e eu menti que fui ao cinema não fui só ao cinema eu também dali saí e andei pela rua sem pensar em ti. Um amigo me disse que não consegue parar de pensar na namorada todo o dia o dia todo, ele pensa na namorada o abraço a carícia, ó meu deus tirai ela daqui, eu ouço quieto faço, uhum, tá apaixonado hein, mas eu só consigo pensar em como estou sendo enrolado, sei sei que ele pensa nela blablablá mas o dia todo é uma mentira, ninguém pensa o dia todo em uma pessoa, as pessoas têm vida própria ou deveriam, um relacionamento em que se se esquece de si mesmo termina aonde? Andei pela rua e não pensei em ti, pensei nas pessoas que passavam: dois cegos se esbarraram no meio da Rua da Praia, tem como acreditar? eram dois cegos que se encontraram numa avenida enooorme então eu ri eu ri alguém me julga por ter rido, eu ri porque o acaso é casual demais, quem é que pensa em dois cegos se encontrando numa avenida tão grande? é mais do que acaso, quem sabe menos, meu coração cego encontrou o teu em luz.
Eu sou cego
Antes e depois de te encontrar.
Por ser perdido nesta vida,
É que fui cego.
Hoje é de mentira.
É que me faço cego
para te enxergar melhor.
Os dois cegos se esbarraram e eu quase me esbarrei em uma árvore, somente o braço me avisou. Olhei para trás e os cegos conversavam, tive certeza de que não se conheciam. Se conversavam por serem cegos, não sei, mas isso parece meio preconceituoso, podem ter conversado porque se esbarraram e ali nascia uma lembrança que não mais se apagaria. Olhei para a árvore e decidi que também ali nasceria uma lembrança eterna indelével para sempre, o que mais sinonimar: tirei minha chave e risquei nossas iniciais. Não penso em ti o tempo todo porém quando penso eu penso de verdade, não é ao passar numa loja de chocolates não é em frente a uma floricultura nem em lojas de perfumes: porque isso é coisa exterior, projetada de fora para dentro empurrada por outros para dentro de mim: quando penso em ti é por fluxo interno, não é algo demarcado ou instituído, é o meu ser que pensa em ti: e não outros que pensam por mim.
Não te dei perfume ou talvez flores.
Não te dei
Cartão de aniversário. Não
Te dei um tênis novo.
Não fiz coração no dia doze.
Mas ontem, ao me despedir de ti
Senti que algo me faltou.
O ônibus veio
E eu tive de correr.
Tu ficaste esperando
O beijo que não se lançou.
Sentei no banco e te olhei.
Chorei por não ter dado o beijo que te pertencia.
O beijo que tu merecias.
O beijo que confirmaria:
E e tu
No casco duma
Arvore.
quarta-feira, 7 de julho de 2010
Possibilidades
Prefiro o cinema.
Prefiro os gatos.
Prefiro os carvalhos sobre o Warta.
Prefiro Dickens a Dostoievski.
Prefiro-me gostando de pessoas
do que amando a humanidade.
Prefiro ter agulha e linha à mão.
Prefiro a cor verde.
Prefiro não afirmar
que a razão é culpada de tudo.
Prefiro as exceções.
Prefiro sair mais cedo.
Prefiro conversar sobre outra coisa com os médicos.
Prefiro as velhas ilustrações listradas.
Prefiro o ridículo de escrever poemas
ao ridículo de não escrevê-los.
Prefiro, no amor, as datas não marcadas,
para celebrá-lo todos os dias.
Prefiro os moralistas
que nada me prometem.
Prefiro a bondade astuta à confiante demais.
Prefiro a terra à paisana.
Prefiro os países conquistados aos conquistadores.
Prefiro guardar certa reserva.
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
Prefiro os contos de Grimm às manchetes dos jornais.
Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas.
Prefiro os cães sem a cauda cortada.
Prefiro os olhos claros porque os tenho escuros.
Prefiro as gavetas.
Prefiro muitas coisas que não menciono aqui
a muitas outras também não mencionadas.
Prefiro os zeros soltos
que perfilados em cifras.
Prefiro o tempo dos insetos ao das estrelas.
Prefiro bater na madeira.
Prefiro não perguntar se ainda demora e quando.
Prefiro ponderar a própria possibilidade
da existência ter sua razão de ser.
Wislawa Szymborska
Prefiro os gatos.
Prefiro os carvalhos sobre o Warta.
Prefiro Dickens a Dostoievski.
Prefiro-me gostando de pessoas
do que amando a humanidade.
Prefiro ter agulha e linha à mão.
Prefiro a cor verde.
Prefiro não afirmar
que a razão é culpada de tudo.
Prefiro as exceções.
Prefiro sair mais cedo.
Prefiro conversar sobre outra coisa com os médicos.
Prefiro as velhas ilustrações listradas.
Prefiro o ridículo de escrever poemas
ao ridículo de não escrevê-los.
Prefiro, no amor, as datas não marcadas,
para celebrá-lo todos os dias.
Prefiro os moralistas
que nada me prometem.
Prefiro a bondade astuta à confiante demais.
Prefiro a terra à paisana.
Prefiro os países conquistados aos conquistadores.
Prefiro guardar certa reserva.
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
Prefiro os contos de Grimm às manchetes dos jornais.
Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas.
Prefiro os cães sem a cauda cortada.
Prefiro os olhos claros porque os tenho escuros.
Prefiro as gavetas.
Prefiro muitas coisas que não menciono aqui
a muitas outras também não mencionadas.
Prefiro os zeros soltos
que perfilados em cifras.
Prefiro o tempo dos insetos ao das estrelas.
Prefiro bater na madeira.
Prefiro não perguntar se ainda demora e quando.
Prefiro ponderar a própria possibilidade
da existência ter sua razão de ser.
Wislawa Szymborska
terça-feira, 6 de julho de 2010
Junho
Postagem para o Clube da Escrita:
Ele vive no Brasil e por isso não existem bonecos-de-neve, mas ainda vai ao parque sentar nas praças e imaginar que cada árvore é um boneco que cada boneco é uma árvore - cada criança é um adulto e adulto é criança. A praça é ele, e ele é a praça. A praça se chama Camilo e ele se chama Praça das Flores. Ninguém nunca parou para pensar o que aconteceria se todos os papéis do mundo fossem invertidos, não os papéis de destino [?], mas os papéis representados - porque ele é a representação de um jovem e um jovem é a representação do ser humano: mas e se a representação dum jovem fosse um cão? E se algumas pessoas tivessem a habilidade de viver 12 segundos da vida do outro, Camilo pensa mas não sabe. Camilo, não: Praça das Flores. É em junho que a praça fica mais bonita por causa do: frio. Camilo não é feio e sai em fotografias com casacos forrados e jeans desbotados mas mesmo assim não é feio. Todos dizem que é ele quem mais chama a atenção nas fotos: mas Camilo diz que quem chama é o frio. O frio não sai em fotos, mas ele diz que sim, porque se manifesta nas feições de cada um. Cada um de nós tem uma feição para cada estação, e a feição de Camilo no inverno é a mais bonita.
Em junho a praça fica mais bonita, assim como Camilo. A praça mais intimista e Camilo mais hermético. Eu acho que no fundo no fundo, ser hermético é ser bonito - ser bonito é mais hermético. Eu tenho um pouco de intimismo dentro de mim, quer dizer, porque ninguém lê meus pensamentos. Mas Camilo se esquece: se esquece que a praça suga tudo, as Flores captam a luz mais ínfima e o pensamento mais retrógrado, não há como esconder-se apenas resta o conformismo de que um a um somos herméticos para um e para todos, Camilo não lê o pensamento dos outros, mas os sente: mas entre saber e sentir - esconde-se um abismo que mata tanta gente, que afoga sim quem pense em cruzá-lo. Camilo é diferente porque tenta. Camilo tem Junho dentro de sua alma, e Junho tem Camilo em sua estação: porque no inverno todos ficam mais bonitos. Não por esconderem em casacas suas gorduras e estrias, mas porque no inverno todo mundo é hermético. E ser hermético é bonito: não pros outros: mas pra si, porque Camilo sabe que a beleza está nos olhos de quem vê: e só o intimismo cria tal olhar.
(Camilo em Junho é mais bonito.)
*
Acho que primeiro me apaixonei pelos dentes os dentes
são perfeitos não pode haver uma boca mais perfeita.
Te amo Max. Te amo mas em janeiro meu boneco.
As Meninas, Lygia Fagundes Telles
Ele vive no Brasil e por isso não existem bonecos-de-neve, mas ainda vai ao parque sentar nas praças e imaginar que cada árvore é um boneco que cada boneco é uma árvore - cada criança é um adulto e adulto é criança. A praça é ele, e ele é a praça. A praça se chama Camilo e ele se chama Praça das Flores. Ninguém nunca parou para pensar o que aconteceria se todos os papéis do mundo fossem invertidos, não os papéis de destino [?], mas os papéis representados - porque ele é a representação de um jovem e um jovem é a representação do ser humano: mas e se a representação dum jovem fosse um cão? E se algumas pessoas tivessem a habilidade de viver 12 segundos da vida do outro, Camilo pensa mas não sabe. Camilo, não: Praça das Flores. É em junho que a praça fica mais bonita por causa do: frio. Camilo não é feio e sai em fotografias com casacos forrados e jeans desbotados mas mesmo assim não é feio. Todos dizem que é ele quem mais chama a atenção nas fotos: mas Camilo diz que quem chama é o frio. O frio não sai em fotos, mas ele diz que sim, porque se manifesta nas feições de cada um. Cada um de nós tem uma feição para cada estação, e a feição de Camilo no inverno é a mais bonita.
A minha feição mais bonita
É a que não tenho pra você.
A que escondo todo dia
Pra te ver. A que cultivo todo o ano
Pra me ter
Guardando todo o santo dia
(Um dia pra
Você.)
Em junho a praça fica mais bonita, assim como Camilo. A praça mais intimista e Camilo mais hermético. Eu acho que no fundo no fundo, ser hermético é ser bonito - ser bonito é mais hermético. Eu tenho um pouco de intimismo dentro de mim, quer dizer, porque ninguém lê meus pensamentos. Mas Camilo se esquece: se esquece que a praça suga tudo, as Flores captam a luz mais ínfima e o pensamento mais retrógrado, não há como esconder-se apenas resta o conformismo de que um a um somos herméticos para um e para todos, Camilo não lê o pensamento dos outros, mas os sente: mas entre saber e sentir - esconde-se um abismo que mata tanta gente, que afoga sim quem pense em cruzá-lo. Camilo é diferente porque tenta. Camilo tem Junho dentro de sua alma, e Junho tem Camilo em sua estação: porque no inverno todos ficam mais bonitos. Não por esconderem em casacas suas gorduras e estrias, mas porque no inverno todo mundo é hermético. E ser hermético é bonito: não pros outros: mas pra si, porque Camilo sabe que a beleza está nos olhos de quem vê: e só o intimismo cria tal olhar.
Camilo corre pela praça
E esquece que pisa em folhas dumas árvores
Que antes eram ele. As árvores
Eram bonecos-de-neve.
Bonecos não falam:
Mas escutam.
Adultos não escutam:
E parecem só hablar.
Adultos em Junho.
Camilo em cada estação
(Não de trem, mas daqueles que se sente
Pela pele. Aquelas
Que os poetas tentam escrever.)
Camilo não escreve:
Camilo pensa.
(Camilo em Junho é mais bonito.)
sexta-feira, 2 de julho de 2010
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