sábado, 13 de agosto de 2011

Segunda crônica do soldado da lembrança


Uma vez, quando muito pequeno, minha mãe levou eu e meu irmão para uma reunião da escola, à noite. A dele era seguida da minha. Levou-nos sozinha, visto que meu pai naquela noite precisava comparecer em um jantar de negócios. Fomos os três - meu irmão apenas um ano a mais do que eu.

Voltávamos a pé. Era verão, daqueles em que mesmo após o sol ir embora, anda-se e sua-se. Com o alívio vindo vez em quando, arrastado com a brisa que parece nos fazer mais leves e o sereno que parece dar mais força.

Ao chegarmos na quadra de nosso prédio, vimos que toda ela estava sem luz. Meu pai ainda não chegara, tendo em vista a hora, e não havia celulares à época por um preço razoável para nós. Mãe, eu disse, a gente vai ir mesmo assim? Não é perigoso? Por dentro eu estava tomado de emoção, como se finalmente estivesse vivendo uma situação perigosa parecida com os desenhos que adorava assistir. Como se minha vida corresse um real perigo, cuja salvação só se daria por meio de um teste de bravura. Ela disse que sim, de qualquer maneira. E fomos.

Eu de um lado, meu irmão do outro. Ele aparentava não estar com nenhuma sombra de medo. Acho que pretendia ser bravo, como supostamente devem ser os irmãos mais velhos. E, na ausência de nosso pai, seria o responsável pela segurança da mãe e do irmão caçula. De qualquer forma, éramos duas crianças e uma mulher sem armas, pensei. Ledo engano. Mais tarde descobri que uma mulher defendendo seus filhos é das coisas mais perigosas que há por aí.

Mas enfim. Descemos a quadra a passos largos. Chegamos no prédio. Para a confirmação de nossos receios, o prédio também estava sem luz. Caiu sobre todos a névoa do medo. Pouco menos de um mês antes, o zelador encontrara, de manhã cedo, um mendigo dormindo no quarto onde colocava-se o lixo. Era uma espécie de depósito, encontrado no meio do corredor em todos os andares, onde jogávamos a sacola de lixo em um buraco, cuja conexão com uma lixeira gigantesca, no térreo, dava-se por um sistema de tubos largos. Após todos saberem do caso, instalou-se nos condôminos o receiro de ir ao quarto do lixo - como chamavam o recinto as crianças do prédio. Minha mãe passou a não nos deixar irmos sozinhos lá, com medo de darmos de cara com um homem barbudo e sujo. Mais tarde, o lugar viraria o elevador do prédio.

Como a novidade tecnológica viria só meses mais tarde, precisávamos subir ao 6º andar com o risco de dar de cara com um mendigo. Uma mulher de 40 e duas crianças. Subimos de mãos dadas, minha mãe um passo à frente. Lá pelas tantas, confessei que tinha muito medo e que queria voltar.

- Não precisa ter medo, filho - ela apertou mais forte minha mão. - Não vai acontecer nada, eu estou aqui. De alguma forma, avistei, na escuridão, o sorriso dela em minha direção. Mais provável é que o tenha sentido, pois que imediatamente fiquei mais calmo. 

Chegamos em casa sãos e salvos. Muitos anos mais tarde, minha mãe revelou que nunca teve tanto medo na vida. Só que, no momento em que eu disse que temia, era sua obrigação me tranquilizar. "Se uma mãe mostra que tem medo, o que sobra pro filho?", falou.

Hoje tive que trocar as fraldas dela. Minha mãe não se lembra dessa história, ocorrida décadas atrás. Muito menos que disse que eu não precisava ter medo. Enquanto coloco ela na cama e vejo as feridas causadas por uma doença terrível, em nada a ver com Alzheimer, e temo pela morte dela, digo para mim mesmo: não precisa ter medo, não precisa ter medo...

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