quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Primeira crônica do soldado da lembrança

Começa uma história formada por alguns capítulos. Este é o primeiro. Não tenho
a menor ideia de quantos vão haver. Se a sorte estiver do meu lado, 
consigo escrever os próximos. Por enquanto, tudo é uma nuvem e um nada. 
Tudo é ficção. "Tudo é dançável". 


Dei a comida na boca. Coloquei um pano de prato ao redor de seu pescoço, cobrindo até em cima do queixo. Assim evitava que caísse algo na pele. Eu vestia um pijama limpo, visto que ela não permitia que sentassem na cama com roupas de rua - a maneira como chamava qualquer peça usada fora de casa. Depois da porta, dizia, tudo é cheio de energia incontrolável, dessas que a gente não sabe de onde vem. A cama é sagrada, só senta nela em quem a gente confia pra passar a noite.

Com o passar dos anos, parou de falar da rua. Entretanto, conservou o medo que secretamente tinha dela. E, por consequência, manteve o engraçado hábito de averiguar se estávamos de pijama. Com a repetição da vigilância, nem esperávamos que ela indagasse: rapidamente púnhamos logo a roupa. Ela, na outra via, perguntava sempre. Vez em quando esquecia que a recém perguntara, e novamente repetia a questão. Ontem, ao mesmo tempo em que eu dava sopa em sua boca, seguidamente ela olhava para meu corpo. Dado que estava muito fraca, às vezes se contentava em passar a mão pelo tecido a fim de investigar a grossura do pano. Ficava uma meia-hora sem pensar no assunto, mas em seguida já perguntava de novo.

Minha mãe tem Alzheimer e a maior coleção de pijamas que já vi na vida. Um armário inteiro só para peças de dormir. Ironicamente, grande parte da vida teve insônia.

Ontem, dei comida na boca dela. Como se fosse criança, e eu conhecesse toda a sua vida. Pela primeira vez, fingi que podia tomar conta. Tudo uma mentira, evidentemente. Só tomamos conta de quem se permite ser tomado. Às vezes, choro pelo fato de não poder mais mentir junto com ela.

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