quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Fragmentos, sotaques e revisões


O frio de 8°C derreteu boa parte da neve acumulada em dois dias consecutivos de precipitação. Caminhar pelas ruas já não é mais uma experiência agradável, senão um exercício de cuidado em evitar os montes acinzentados de gelo e sujeira. Em vez de uma paisagem onírica, a cidade desfalece pelo asfalto em direção aos bueiros, como a provar que o tempo tem um prazer em oprimir memórias felizes. Minha amiga, escondida em um grosso casaco marrom de veludo, sente frio e ajeita o cachecol vermelho. Já passa de 1h da manhã. Apesar do sono, ela segue tentando esconder a tristeza que toma seus gestos e falas. O namorado, com uma previsível gentileza, esconde-se em um prédio para mijar a fim de nos deixar sozinhos na despedida. 

Como é isso de se aproximar de uma pessoa a ponto de fazer parte dela e depois ter que se despedir sem a plena certeza de que um dia haverá um reencontro? 

"Erasmus mudou a nossa vida". Sempre gostei do seu leve sotaque alemão. Minha amiga foge de todos os estereótipos que possamos atribuir a pessoas do seu país. Não gosta de cerveja, fala docemente, não é nem um pouco fria e seu maior objetivo é viver de arte e de ensinar alemão e francês. Enquanto esperamos o meu trem em uma cidade cercada por montanhas em todos os lados, fazemos esforços de não dar importância à despedida. "Eu volto para Grenoble na primavera. Senão, a gente pode se ver em Florianópolis". Sorrio, porque sei que quer me confortar. Se o presente é triste, ao menos devemos aceitar o conforto dos planos. 

Ainda não entendo como é possível criar uma ligação tão forte com uma pessoa por intermédio de um idioma que você não domina da mesma forma que o faz com sua língua materna. Creio que, nessas horas, os gestos e expressões faciais adquirem um poder imensurável. E o silêncio na hora certa vale ouro. A mensagem essencial, evidentemente, é sempre repassada. Mas a falta de intimidade com o francês exige que andemos na mesmíssima roda-gigante, na qual lidamos com uma lista de palavras predeterminadas para descrever sentimentos sem dar sempre conta das nuances. E se não sabemos o verbo, explicamos. Se não sabemos explicar, inglesamos. 

"Faz uma semana que não falo ou penso em alemão", disse-me pouco tempo atrás, enquanto esperávamos o sinal vermelho para os carros. Para mim faz uns três, respondo. "Então falemos agora". Por 30 segundos ela conversa em uma língua bruta demais para sua delicadeza. Em seguida, como quem pega pela mão um pássaro que estava voando, falo em português sobre como a neve me deixa simultaneamente feliz e triste. Rimos e atravessamos a rua, embalados pelo conforto de que, em alguma forma, reaproximamo-nos de nossas origens. A falsa certeza de que sabemos de onde viemos. E, com isso, para onde caminhamos. 

Falar em uma língua que não é sua, viver em um pais que não é o seu, acordar todos os dias com uma paisagem que lhe é estranha e estudar assuntos que você nunca tinha refletido sobre acaba por criar um vazio no meio do peito, cuja dor aflige por também ser prazerosa. Somos este vazio que nos toma ou o espaço que nos preenchia antes? Os novos amigos são mais importantes do que nunca, ocupando o lugar da família e dos parceiros de longa data. Ao correr das tardes frias, minha amiga e eu revivemos o passado para conhecer um a história do outro. A intimidade nasce das memórias compartilhadas, em uma ponte que aproxima todos os tempos verbais, um processo que envolve fatos presentes e retrospectivas do que já foi. No nosso caso, ainda a previsão de um futuro - incerto e líquido. 

Bate um vento forte e coloco minhas luvas. Ela abre a bolsa e tira três fotos. Em uma, há uma dedicatória. "Mas lê somente no trem, de acordo?". E em seguida me dá as imagens, apertando minha mão direita assim que toco seus dedos. Começo meu discurso de adeus, sem querer ser cafona, mas já sendo (porque as verdadeiras cartas de amor são sempre ridículas, como dizia Pessoa...). Sou interrompido pelo barulho do trem, que corta todas as expectativas de uma despedida decente, carinhosa e cinematográfica, do jeito que a gente gosta. Nos segundos que nos restam, minha língua fica presa e não tenho sucesso em expressar-me. Scheisse! Désolé, chérie... Ela ri e me diz até breve, também presa pelos muros impostos por esta língua que ora nos liberta, ora nos oprime. Digo obrigado, meu deus, obrigado por tudo, e a abraço. Até breve baixinho e entro no trem. Ela sorri na calçada e abana. 

Irônico o fato de que é minha amiga quem se prepara para partir, mas agora quem vai embora sou eu. A vida, nessa mistura de palavras, encontros e desencontros, nos deixa atordoados e sem tempo de respirar e formular uma frase decente, e de repente você se vê na janela de um trem, lendo a parte de trás de uma foto e revendo os últimos seis meses de vida em milésimos de segundo, e a força do sentimento é tão forte que você chora e volta mais uma vez àquela época de criança desolada, cujo doce foi injustamente tirado antes do fim. A hora certa nunca é a de agora. O relógio da vida está sempre adiantado...