quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Cócegas em Pássaros

Depois de todas as tempestades e naufrágios,
o que fica em mim é cada vez mais essencial
e verdadeiro.
(Lixo e Purpurina, Ovelhas Negras,
Caio Fernando Abreu)

Isto é, eu acho que cada coisa que passa pela minha cabeça faz parte de algo maior e que não entendo, às vezes me acho imaturo pra entender certas coisas, às vezes acho que nunca vou entender, como posso diferenciar cada coisa de cada coisa em cada coisa? É sempre assim, a gente se sente mais tranquilo classificando, rotulando, separando, e não negue, por favor não negue, é assim que o mundo se move, e eu entendo. A gente classifica em busca de um sentido, reconhecimento, uma patrulha inconsciente, porque é muito mais fácil controlar ações e situações quando temos conhecimento sobre o que acontece - mas se não temos, fingimos conhecer, nesse me engana que eu gosto que sempre funciona, pois nos enganamos e gostamos. Eu me engano mas nem sempre gosto, acho que faço por costume, não tenho certeza. Talvez não confie em mim mesmo o bastante para parar de me enganar? ou sei lá. Eu sou um sei-lá. Não sei. De vez em quando eu tenho alguns sentimentos que não conheço e tento reconhecer buscando no meu precoce banco de dados ações parecidas e reações meio vencidas, hoje tenho vezes de alguém que sente o diferente de outrora. E não sei que outrora: pois toda a vez que olho para trás me vejo igual mas diferente, diferente mas igual, tem como entender isso? Acho que não, já falei que nem eu entendo e busco classificar pra tentar me entender: racionalizar o irracional tentando achar sentido para o que me assusta, pois sim, me assusto com certas coisas bobas que outros não dão bola, eu só presto atenção em detalhes que considero importantes. Me perguntaram se eu era de Peixes, e eu disse, sim, sim por quê? E disseram que eu sou muito sonhador e dá pra ver isso de cara. Eu perguntei, cara de quê?, e responderam, de Peixes, e eu fiquei pensando, mas que raios cara de Peixe eu tenho?, será que a gente é assim tão superficial? E as pessoas vêm perto de ti achando que sabem de alguma coisa para que perguntem e tu responda com uma cara de tédio para que não fique um clima desagradável? Tem aquela frase que diz as pessoas me cansam, e eu penso, eu é que me canso, porque penso em algumas coisas tão desagradáveis que às vezes sinto um peso que não deveria ter. Desagradáveis como: uma palavra não-dita, um toque não dado um olhar desperdiçado. Talvez eu seja um peso para mim mesmo - sei que às vezes me escondo num casulo e medito dentro dele até que algo me faça sair: e enquanto isso fico em estado de letargia para com o mundo: não rio muito, não falo muito, não vivo muito: viro sombra por momentos em lugares que não devia. Sou sombra. E por ser assim me alimento de luz o máximo que posso - e ao não a ter, sinto a fadiga me cumprimentar. Sinto falta dessa luz, essa luz que vem dentro de mim e me alimenta, essa luz que sempre me ilumina mesmo quando estou em lugares que me mandam fugir: hoje sinto que estou frio e que a noite chega ao meu interior. Não me exiga ser simpático, um riso de alegria ou sorriso de bom-dia. Não agora, deixa-me recluso nesse mundo onde só eu tenho a chave: por hora me tranco e só saio quando der. E não me pergunte quando der: der quando dará, em algum momento se questiona o que o amanhã terá? Hoje saio pela rua e

procuro em avenidas
parapeitos para me
atirar.
Um voo, quem sabe?
sei bem eu.
Um voo para renegar
tudo o que finjo
ser mais meu.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

A gente não sabia

Existe um deus qualquer
nas minhas entranhas.
Hilda Hilst



Eu tinha esperança de que algum ser estranho viesse até mim e dissesse: a saída é por aqui, e realmente fosse por ali; eu me enfiando através de portas corta-fogo, atravessando corredores escuros e macabros que atiçassem minha esquizofrênia à milhão. E de repente minha paranoia se tornasse descontrolada como os gritos de mulheres apanhando - e eu apanhasse dos meus medos infantis -, até que de repente desmaiasse de cansaço e: o suor banhasse meu corpo. Tu aparecesses de mansinho dizendo, vem aqui, vem aqui, e eu não ouvisse nada além de uma voz falha ao longe, tal qual o pôr-do-sol do Guaíba que os hippies aplaudem depois de um baseado. Mas não veio um ser estranho e tu também não vieste, e fiquei sozinho me despedindo à porta da casa do meu amigo. Seria melhor pensar que alguém me espera, seria melhor pensar que eu espero alguém que não o universo ou a minha mãe em casa para conversar sobre a casa novela big brother. Posto que as coisas são assim, o ser humano é assim, a gente não dá a mínima quando não tem uma coisa - mas quando tem e fica sem, entra em abstinência. Eu fui mal acostumado, pois tinha coisas que queria e uma pessoa que satisfazia, mas por luxúria ou mesmo intolerância me desfiz de tudo. Vão-se os anéis, fiquem-se os dedos, me disseram. Mas quando a gente não têm mais dedos faz o quê? Finjo que sou estrela-do-mar e me refaço parte por parte, célula por célula, coração a coração? Não gosto de fingir - mas finjo por/para ti que sou aquele que mais queres: amável afável e agradável. Sou camaleão, não sabes?, pois saberás já, sou camaleão por dentro, e não por fora: tenho minha imagem indelével e pouco indecifrável, às vezes reservado e também complexado. Mas por dentro me abstraio subtraio tudo aquilo que não queres para que reste apenas uma soma não-fracionada, cinzas de uma mudança que já fora feita para outrem ontem eu era outro hoje sou o que não vês (pois aqui tens minha imagem indelével e pouco indecifrável). Eu sou uma rotatória, roda que não se sabe onde é início ou fim, chama que consome o interior do invisível que são minhas entranhas metamórficas.

Mas finges que eu criei novos dedos e que tu não és mais um meu anel - já não me és adorno ou enfeite, serves ao propósito que queres e às vezes ao que não queres: quem sou eu pra dizer o que tu és? Outrora dizias: - acho que devias ser menos sonhador. Mas o que sabias sobre sonhos? Mal sei eu sobre os meus, não quero saber de opiniões em estado de vigília - serei soberbo e só me comunicarei por meio de sonhos. Por isso nos afastamos: quebramos nossa comunicação, um não faz mais parte do sonho do outro (explodi a ponte comunicadora interligada a pensamentos desconexos imprevisíveis imemoráveis: meus pensamentos: teus pensamentos: foram nossos pensamentos passeando por essa ponte e eu a explodi como se fosse pó -o pó que entrava pelas tuas narinas e o mesmo pó que colocavas nos meus lábios que ficavam dormentes de -paixão). Demoramos e demoramos pra perceber isso, e agora estou eu aqui, bêbado e amaconhado, e tu estás em qualquer lugar que não faço a menor ideia, mas faço questão de saber. Assim terminou: não soubemos como erramos, não soubemos como falhamos, não soubemos como vivemos. A gente se amava, a gente se tratava.

Mas a gente não sabia.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Ceifadora

Ela: Fartei-me de mim mesma: faço procuras que não acabam e sonhos desaguarem água abaixo. Sozinha vou atrás de quem renega, num tempo que os deuses não reclamam, num descanso que só existe em letargia. Cansei-me de não ter descanso; e me canso de sua cara de espanto mesmo quando sabia que eu lhe buscaria. Anda, dá-me um bom motivo para que eu não te leve para o Mundo dos Mortos.

ele: Eu tenho esse viver que me engana, me fazendo perder o juízo vez em quando. Não tenho juízo e busco ele nos mais variados campos e jardins: de girassóis, luzes e insônias. Enveredo por matos festeados por cobras, ratas e insetos, correndo atrás de algo que não tem pernas mas corre, não tem olhos mas me enxerga de longe. Eu te observava de longe: pé a pé chegavas perto do meu corpo. Mentes ao dizer que tua presença traz-me espanto: tenho um leve pranto como inconformado com o cessar de minha busca interminada. Não me quero no Mundo dos Mortos pois ainda não me acostumei ao Mundo dos Vivos; nem minha casa é o Mundo dos Sonhos, apesar de viver nela na maior parte do tempo. Não faça essa cara como de quem já ouviu isto antes, não me engane da maneira como engana os outros, não sou como os outros, tenho no meu sangue um pigmento que me difere de todos, inclusive de ti: uma luz que acende todas as grutas escondidas, enfestadas de morcegos chupassangue. Eu vou cantar, e meu mundo vai ficar cheio de cores mais diversas que o paraíso, para onde levas poucas almas protetoras de outras almas - minha alma é luz de encantamento. Não sirvo para o Mundo dos Mortos e tampouco para o Mundo dos Vivos, sei que sou de outro mundo, um que não descobri mas que me espera; por isso digo que não é hora de me levares para longe da minha busca: sou arqueiro incansável e minhas flechas são infinitas.

Ela: Você tem uma maneira de viver que me agrada e um sapateado que agride o Mundo dos Mortos, onde carcaças assistem almas voarem em direção à luz, como moscas na janela. Quero-te agora: ao meu lado correremos atrás de outras almas que tiveram o seu tempo de viver - e que logo chegará o de morrer. Vem comigo, vem comigo para essa busca interminável, bem sei que este é o mundo que te espera: e somente eu o conheço: vivo: e te recebo. Vem comigo para o Meio-Mundo.

ele: Se meu sapateado te encanta, vou atrás de ti como uma mão busca a outra, em toques frios e quentes, alcançando o equilíbro: tu és meu equilíbrio, pois tua temperatura atrita com a minha, e teus átomos se chocam com os meus, fazendo mínimas explosões criadoras de novos mundos. Seremos dois criadores de mundos, e reinará aquele que melhor se adaptar.

Ela: Viveremos neste meio termo.

ele: Eu sou um meio-termo.

Ela: Vem comigo completar-me por inteira.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Fluídos

Só meu sangue sobe tua seiva e senha
e irriga as margens cegas
de tuas elétricas ribeiras
sendas de tuas grutas ignotas
(Adriana Calcanhoto)


Esses teus temores infundados não terão mais qualquer lugar quando estiveres perto dos meus braços - em roda àquilo que farei. Teus olhos castanhos não serão mais expressivos: serão receptivos às energias dos meus toques pois sabes que um abraço é mais do que um abraço, sabes que é uma proteção, uma troca de fluídos visíveis apenas àqueles que podem ver. Sabes que às vezes vejo estes fluídos, e falo:

- Vês aqui alguns pontos amarelos unidos a pontos vermelho-rosa-choque; unidos formam estas linhas que passeiam entre nossas mãos e os dedos suplantam pontes verborrágicas; nosso amor não se mede em decibéis ele aparece ao juntarmos nossos dedos e formarmos estas linhas dançantes, a nossa cabeça é palco de energias infinitas: infinitas como o calor do aconchego.

Eu passeava por Buenos Aires e vi uma loja com o nome, Como Quieres que Te Quiera?, e pensei nos quereres que nós temos. Today i want some icecream, tomorrow i want you in my team. Por pensares que o mundo voa enquanto nós ficamos parados é que te enganaste pois o mundo voa - mas nós também. Voei até teu lado e ouvi teus pensamentos que diziam:

- Não sinto aquele escorrer dos meus olhos e tampouco aspiro a um construir intransponível; o meu sagrado não me é sagrado e vejo agora a loucura escorrer por minhas veias; tatuo o meu amor à sangue na pele de alguém que mal conheço: eu mal me conheço: quanto mais os outros que finjo conhecer: porque meus amigos: meus amores: minha família: não os conheço e somente sei da existência dum existir construído a suor e lágrimas (não são máscaras, mas peles de outras armadilhas).

Talvez sejas minha própria Buenos Aires. La Boca. Porque eras de um jeito degradado e pouco a pouco: passo a passo viraste o que és agora, este colorir que alegra meu viver. E também és meu porto, onde troco mercadorias secretas - das mais secretas sustâncias corporais. Navego pelo teu rio e ainda me afogo vez em quando ao ver que não tenho pé. Tenho teu pé. E com ele troco fluídos invisíveis, visíveis apenas àqueles que tem o dom de ver pontos amarelos se juntarem com pontos vermelho-rosa-choque. Causo choque no teu corpo enquanto tu causas pane no meu viver que vai de ti a ti.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Saída de Emergência


(É apenas uma escada
mas que leva a

dois destinos.)

 Algumas palavras no ouvido, e de repente ela já está descendo as escadas e corre, como corre, nós estamos no nono andar e ela corre e tem bolsa de couro sintético e usa rasteirinha, talvez já estivesse pronta para a ação, talvez não - é possível que o inconsciente já soubesse que teria que fugir do namorado, o que a faz correr ainda mais; o homem vai atrás, vadia, diz, vem aqui, vadia, mas ela não para de correr, o homem não para de correr, e as escadas não parecem acabar; o barulho de elevador atordoa, ai meu deus, ele vem de elevador; mas não, ele não vem de elevador porque sempre demora e não é agora que pode demorar; o homem não pensa, não articula, não trama, só corre atrás, parece que por instinto, ele socou ela, também por instinto, mas agora é uma força maior que o faz correr atrás; e ela corre, como corre, não é força maior que a move, são todas as forças - menores médias e maiores -, porque sua mãe dizia, você é burra por continuar com ele, mas a gente não escolhe quem ama - e essas escadas que não terminam nunca -, eu acho que sempre me atraíram os homens rebeldes - sem causa por causa criando causa -, talvez eu seja uma causa sem causa; o homem tem pernas fortes e compridas, até que ganha uma vantagem, mas ainda assim está dois andares atrás, efeito do vaso quebrado nas costas; (puta, quem pensa que é, uma vadiazinha, isso sim, querendo me peitar, eu que te sustento!) (eu aqui, louca pra te dar e você sai comendo as outras, ordinário!) - tapa na cara - (covarde! pois bem feito você ser broxa) - soco - (puta); os vizinhos escutaram a briga toda mas não interviram, diz que o homem tem revólver; caem lágrimas salgadas no piso gelado das escadarias frias, a mulher não sabe o que fazer só tem que correr: somam-se gotas férreas de sangue quente às lágrimas há pouco recentes; por quê, por quê eu continuei com ele, por quê eu fui me apaixonar por ele, será que a vida é assim? e não tem solução, e as pessoas se apaixonam de jeitos inexplicáveis: mulheres amam homens que as torturam, homens que amam mulheres que os configuram , homens que amam homens que não os completam, mulheres que amam mulheres que mal interpretam e ainda há os travestis; a mulher chega dá o último pulo no último degrau do primeiro andar, socorro! ela grita, mas o porteiro está cagando; não sabe abrir o portão, sabe que tinha que apertar um botão na escrivaninha do porteiro, mas rápido! pois o homem está chegando; ele agora já está no segundo andar e pula dois degraus de cada vez, só sabe que tem de parar a mulher, a mulher que está ali, na escrivaninha do porteiro; não acho o botão, não acho o botão, aquele homem vai me matar, ela tem certeza, cadê o puto que tá cagando?, já é de madrugada e ninguém vai passar na rua, eu vou morrer, ela pensa; assiste o homem dar o último pulo no último degrau do primeiro andar, esboçar um sorriso que ela tem certeza ser irônico: o mesmo sorriso que ela teme ver - sente fantasmas virem por perto e dizerem "corre"/uma vontade de vomitar tonteia tudo; o homem sente dedos de fantasmas levantarem levemente as extremidades de seus lábios, e diz:

-Suzanah, vem aqui, eu só quero conversar.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Sangue de Jesus

Hoje tenho pais, sim, tenho pais que me amam e me acolhem e me recebem, hoje tenho pais. Quem olha não desconfia que uma vez não tive, em alguma era eu não tive pais e fiquei à mercê do vento - talvez de Deus; se eu pudesse colocar "de Jesus" no meu nome seria mais fácil. Não se sabe e não se entende, por algum tempo fui órfão e vivi numa cama de hospital esperando: esperando o dia em que viriam me pegar. Não vieram. Não me importei não os odiei não senti sua falta, era apenas um bebê (um bebê que não sentia nada além das coisas de bebê; os bebês que sentem coisas que os médicos apenas tentam - desvendar para publicar em revistas científicas dizendo: - os bebês acham que ao chorar a luz se acende, e não por causa dos pais. Os bebês entendem coisas que os adultos não entendem, eu fui um bebê e não sei o que entendia, sei que alguma coisa abstraía porque agora estou aqui e me agradam hospitais).

Hoje ando por aí comungo com os ventos
vejo prédios que impõem presença aos outros
outros que não veem os prédios
eu bem vejo os prédios
saio sem meu guardachuva e não me importo de molhar-me
piso em folhas que outrora viviam
(e me sinto como daqueles assassinos incontroláveis)
apesar de morta agora torturada
uma inofensiva folha
folha morta que antes vivia n'árvore
árvore que criava a folha de maneira
que não fui criado.

"Pai é quem cria". E quem não cria é o quê? Pouco me importam as nomenclaturas, não sei delas e elas não sabem de mim; vida boba minha que parece ser cheia de "nãos". Quem sabe de meus pais senão deus?: deus ou qualquer existência cósmica que me faz dormir. Uma conhecida minha, adotada também, disse que um dia vai conhecer os pais biológicos - quer saber quem foi que a abandonou. Também quero. Mas se não encontrar também não morro pois vivo nesse laborioso trabalho de buscar algo que não sei - busca de pais/busca de sentido/busca da vida? E se minha mãe era prostituta e meu pai drogado, também tenho sangue de china e viciado? E se forem famosos e talvez eu seja fruto de um caso talvez proibido; mais prático ainda: e se meus pais eram pessoas normais daquelas que não acrescentam nada ao mundo, daquelas que são só mais um na corrente, serei eu também qualquer vivente?

Hoje saio por aí vou ao cinema
vejo dramas e saio pensando
 se minha vida poderia ter sido
 o filme que acabei de ver
em cada filme vejo
 uma vida minha que poderia ter sido
mas não foi.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Este Frio da Cidade de Porto Alegre

Eram dois no banco da praça:

meu amigo que vieste fazer neste banco da praça num inverno rigoroso como este num banco que até então somente eu ocupava meu amigo se aprochegue que o frio espanta tudo mas não espanta o aconchego sim meu amigo eu não te conheço mas já sei que és meu amigo por sentares neste banco de praça num inverno rigoroso eu uso luvas e tu não não queres uma das minhas luvas homem bem sabes que neste frio de porto alegre morrem células que aos poucos degeneram tecidos afetando sistemas que nos levam ao hospital este frio de porto alegre não poupa rico ou pobre e bem sei que és pobre por não usares luvas sim

com licença eu andava por esta praça neste frio da cidade de porto alegre e o padeiro fez um preço muito caro pelo café e reneguei o café de um padeiro que não fez nada demais além de encarecer um preço de café eu gosto de café mas não dos cafés caros não tenho luvas porque as luvas não me deixam pegar na xícara onde servem meu café eu gosto de creme mas não muito me disseram que tenho diabetes pobre é sua mãe
 
Mais um homem no banco da praça:
 
olá meus caros vocês viram que uma tartaruga comeu uma pomba agora neste frio da cidade de porto alegre as pombas parecem ter desaprendido a voar com este frio talvez tenha caído neve nas suas articulações sim sim eu tambem gosto de café mas acabei de ver uma tartagura comendo uma pomba onde esse mundo vai parar primeiro enchentes depois terremotos agora tartarguras que comem pombas esse aquecimento global sim já disse que gosto de café esse aquecimento global
 
Outro homem senta no banco da praça:
 
Ei, cês têm um dinheirinho pra mim tomá uma cachaça?

café

Primeiro dois:
e mais um
e mais um

Muito café
espanta o frio
mas não assusta o medo
que tinhas de desaparecer
no inverno que encobria pombos tartarugas

Eu também temia
sôfrego e trôpego,
numa Porto Alegre fria,
onde quatro homens sentados num banco de praça
não são visados:
(não existem)
vivem numa consistência duvidosa

Eu também sou humano
E sinto frio e fome e sono
numa Porto Alegre fria

É no anonimato
que o perigo se esconde,
é num breve hiato
que meu viver tem onde
se quedar
neste silêncio que fere
 mais do que
muitos gritos

Um inverno
o dia todo todo dia
um aconchego
numa Porto Alegre fria.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Boneco de pano


Eu tenho pés-de-pano ao levantar da nossa cama e cuidar para que meus passos no escuro não te tirem do mundo que estás descobrindo, um mundo que eu não conheço e nunca conhecerei, um mundo que só tu sabes a entrada e às vezes nem sabes a saída. E assim são meus pés quando discutimos e tu olhas para mim com um olhar que tenta ser intimidador: cuido para não pisar em algumas das tuas feridas que não estão bem cicatrizadas. Meus pés são de pano ao cuidar o que falar quando estás de mau-humor, e também ao sussurrar palavras bobas no teu ouvido (que sei que te seduzem e te fazem derreter). Tenho mãos-de-pano ao escrever poesia no espelho do banheiro, e ao tocar teu corpo como se fosse páginas do meu livro favorito. E assim se fazem as minhas mãos enquanto arrumo nossa cama e vejo teus bilhetes que dizem, essa cama me traz melhores lembranças quando desarrumada. Rio com minha boca de pano. Meu corpo é de pano quando deixo que me toques e me amasses como se eu fosse um boneco; e também sou boneco quando deixo que faças tudo o que queres de mim: e ao costurar um sorriso no meu rosto ao te avistar: e ao te entreter quando na tv só passa propaganda.

Para ti, sou todo de pano, exceto este coração que hoje sente algo tão quente que retalhos de tecido barato não suportam - e meu corpo de pano entra em chamas com tua presença ao meu corpo inflamável.

Sou de pano de manhã
até de noite,
e ao entardecer
amassado
 por alguém
que esquece que sou feito de retalhos de outras vidas
 - retalhos de outras brincadeiras.

(Sou de pano para ti
e mais ninguém.)

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Noite



Tão perto!
Tão longe!
Por onde
é o deserto??
Às vezes,
responde,
de perto,
de longe.
Mas depois
se esconde.
Somos um
ou dois?
Às vezes,
nenhum.
E em seguida,
tantos!
A vida
transborda
por todos
os cantos.
Acorda
com modos
de puro
esplendor.
Procuro
meu rumo;
horizonte
escuro:
um muro
em redor
Em treva
me sumo.
Para onde
me leva?

Pergunto a deus se estou viva,
se estou sonhando ou acordada.
Lábio de Deus! - Sensitiva
tocada.

Mar Absoluto e Outros Poemas - Cecília Meirelles