sábado, 20 de fevereiro de 2010

Ceifadora

Ela: Fartei-me de mim mesma: faço procuras que não acabam e sonhos desaguarem água abaixo. Sozinha vou atrás de quem renega, num tempo que os deuses não reclamam, num descanso que só existe em letargia. Cansei-me de não ter descanso; e me canso de sua cara de espanto mesmo quando sabia que eu lhe buscaria. Anda, dá-me um bom motivo para que eu não te leve para o Mundo dos Mortos.

ele: Eu tenho esse viver que me engana, me fazendo perder o juízo vez em quando. Não tenho juízo e busco ele nos mais variados campos e jardins: de girassóis, luzes e insônias. Enveredo por matos festeados por cobras, ratas e insetos, correndo atrás de algo que não tem pernas mas corre, não tem olhos mas me enxerga de longe. Eu te observava de longe: pé a pé chegavas perto do meu corpo. Mentes ao dizer que tua presença traz-me espanto: tenho um leve pranto como inconformado com o cessar de minha busca interminada. Não me quero no Mundo dos Mortos pois ainda não me acostumei ao Mundo dos Vivos; nem minha casa é o Mundo dos Sonhos, apesar de viver nela na maior parte do tempo. Não faça essa cara como de quem já ouviu isto antes, não me engane da maneira como engana os outros, não sou como os outros, tenho no meu sangue um pigmento que me difere de todos, inclusive de ti: uma luz que acende todas as grutas escondidas, enfestadas de morcegos chupassangue. Eu vou cantar, e meu mundo vai ficar cheio de cores mais diversas que o paraíso, para onde levas poucas almas protetoras de outras almas - minha alma é luz de encantamento. Não sirvo para o Mundo dos Mortos e tampouco para o Mundo dos Vivos, sei que sou de outro mundo, um que não descobri mas que me espera; por isso digo que não é hora de me levares para longe da minha busca: sou arqueiro incansável e minhas flechas são infinitas.

Ela: Você tem uma maneira de viver que me agrada e um sapateado que agride o Mundo dos Mortos, onde carcaças assistem almas voarem em direção à luz, como moscas na janela. Quero-te agora: ao meu lado correremos atrás de outras almas que tiveram o seu tempo de viver - e que logo chegará o de morrer. Vem comigo, vem comigo para essa busca interminável, bem sei que este é o mundo que te espera: e somente eu o conheço: vivo: e te recebo. Vem comigo para o Meio-Mundo.

ele: Se meu sapateado te encanta, vou atrás de ti como uma mão busca a outra, em toques frios e quentes, alcançando o equilíbro: tu és meu equilíbrio, pois tua temperatura atrita com a minha, e teus átomos se chocam com os meus, fazendo mínimas explosões criadoras de novos mundos. Seremos dois criadores de mundos, e reinará aquele que melhor se adaptar.

Ela: Viveremos neste meio termo.

ele: Eu sou um meio-termo.

Ela: Vem comigo completar-me por inteira.

3 comentários:

Natália Paes disse...

Posso ver,ouvir a ceifadora sussurrando as palavras...
Instigante diálogo...

Ana Luisa Pacheco disse...

HUM RS.AGORA COM TWITTER.

Ana Luisa Pacheco disse...

O mundo dos mortos é viver sem dose de intensidade. Viver ser amores platonicos?