O Brasil é formado por seis letras e 191 milhões de pessoas. Agora que você leu isso já são mais. Umas morreram, outras nasceram, no entanto a maioria ainda vive. São novas pessoas, porém o Brasil ainda tem seis letras. Mudam as pessoas e as pessoas mudam, mas a nossa ideia de nacionalidade se mantém, nos dando a sensação de que estamos unidos e de que algo que não vemos nos conecta de maneira inexorável. Nacionalidade é como Deus, no que diz respeito a ser um motivo que nos une. A diferença é que todos concordam que nacionalidade existe. Nacionalidade é um conceito bem abstrato, mas talvez nação seja mais. Stuart Hall fala que a Nação é um "sistema de representação cultural", e, a partir dela, todos nos uniríamos. "Nação é uma comunidade simbólica, e é isso que explica seu 'poder para pegar e gerar um sentimento de identidade e lealdade' (Schwarz)". A cultura conecta as pessoas, através de uma cultura nacional, que representaria a identidade de toda a população regida sob um teto político. Esta cultura se construiria (construir-se-ia...) através de vários fatores, como padrões de alfabetização, uma só língua para se comunicar, formação de instituições culturais etc.
Todos esses conceitos, na minha opinião, entram em xeque com o nosso mundo, porque num só país existem várias culturas quase opostas, mas que se unem por causas políticas. O Rio Grande do Sul é muito mais parecido com o Uruguai e Argentina (velha comparação esdrúxula) do que com o Nordeste. E mesmo assim, não faz parte desses países. Ciência política, venha a mim, por favor.
Enfim, o horário político começa, aparece a Dilma e o Serra falando do "nosso" Brasil, do "nosso" pré-sal, "nossas" florestas, "nossas" terras e blablablá. Mas será que tudo isso é nosso? Você pode ir até o pré-sal, esperar extraírem o petróleo lá de baixo e pegar uns litros num baldinho? Não pode. Porque isso não é seu. As terras não são suas, nem as florestas, nem o pré-sal. Nada é seu: é da sociedade. E para fazer parte da sociedade, é preciso estar inserido no conceito de nacionalidade, de nação, deter os signos culturais que nos "unem". Quem não detém nada disso, fica fora, porque não faz parte da "nossa" nação, não tem "nossa" cultura, não é digno de ter "nossas" florestas e terras e pré-sal.
É tudo seu. É tudo de ninguém.
A sociedade são todos mas ninguém é sociedade. Para estar inserido em uma, é necessário abdicar do benefício próprio na maior parte do tempo. Você nunca vai estar sempre contente em sociedade. Um amigo disse, ironicamente, que o governo Lula não fez nada por ele, mas porque já tinha comida na mesa. Completou que "não pensar só em si é importante, às vezes".
O meu amigo abdicou da felicidade própria para que outro fosse feliz. Viver em sociedade é isso, é constantemente se anular para que o outro não se anule. Às vezes a gente espera que o outro se anule para que fiquemos felizes, porém às vezes não dá certo. Porque o outro não quer se anular nunca, porque é egoísta e se esquece da gente.
Há um tempo, eu pensava que o governo era ruim porque a maioria das pessoas votava pensando mais em si do que nos outros. Mas não penso mais assim. Hoje peguei ônibus com uma senhora com cara de interior. Tinha o rosto bem vermelho de sol, algumas rugas na testa e uns pés-de-galinha ao redor dos olhos. Acho que o tempo já lhe deu a mão. Começou a conversar comigo e disse que votaria no Serra para acabar com a corrupção, pois o Lula tinha um filho dono da Oi e deveria ser corrupto (?), porque o Serra é muito bom na saúde, porque o Bolsa-família só ajuda vagabundo. Falou várias outras coisas, mas nada que me levasse a pensar que votaria no PSDB somente para se beneficiar. Também queria ajudar os outros. Então cheguei à conclusão de que o Brasil é como é - politicamente falando -, não por causa da falta de vontade da população em querer ajudar os outros, mas por causa da falta de vontade dos políticos de fazê-lo como principal objetivo. Penso que todos, repito, todos os políticos querem ajudar a população. Alguns querem mais do que outros. Alguns pensam que com um pequeno esforço já foi creditado seu "dever" para com o eleitorado, e que agora é hora de pegar a sua fatia. Veem que não faz mal pegar uns trocos para se beneficiar, como pagamento por sua generosidade. Talvez sua nacionalidade (e nacionalismo) não sejam tão intrínsecos à personalidade, talvez não vejam que roubar do dinheiro público é roubar de si mesmo.
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Há algumas semanas, vi que aquelas novas paredes cinza do Arroio Dilúvio, na Avenida Ipiranga, haviam sido pichadas Na hora pensei que era uma droga isso, pois já tinham estragado o negócio limpinho. Contudo comecei a refletir por que umas letras em preto numa parede nova me irritavam. Acho que era meu senso de ordem sendo acionado. Aquilo de estar tudo sempre certo, no seu lugar, com seu objetivo. O objetivo das paredes cinza do Dilúvio são estar lá. Só: estar lá para a sociedade. O fato de a maioria da população não querer paredes pichadas justifica os pichadores não poderem pichar? Por que os pichadores é que devem se anular, se são sempre eles que o fazem?
Pichadores também fazem parte da sociedade, então também vivem no sistema se-anular-e-esperar-que-outro-se-anule. Mas são sempre eles, - os pichadores - que se anulam. Nós (este nós engloba todos que não são pichadores), não. Queremos sempre que nossa voz seja a que fale mais alto. Pichadores são sempre marginalizados: por "depredar" o espaço público e "enfear" paredes. Mas porque não podem ter direito a usar muros da maneira que quiserem vez em quando? Só eles se anulam, só eles ficam calados. Não que eu esteja pregando a pichação: só quero questionar o fato de classificarmos o ato de pichar como algo ruim e errado. No caso de que falei, as paredes cinza do Arroio Dilúvio representam todo o estado de ordem que o Estado prega. Os pichadores que escreveram letras negras são a voz dissonante, que quebraram o ordinário por meio das palavras. Berraram, acabaram com o silêncio imposto pelas paredes antes não tocadas. A gente se irrita porque não gosta das coisas fora do lugar, desta imprevisibilidade que a desordem nos impõe. Os pichadores gritaram nas paredes. Quebraram um silêncio cômodo que se instalou como nuvem em meio ao nosso dia a dia. Mas ninguém quer ouvir esses gritos. Ninguém nunca quer ouvir.