Acordou sem se lembrar de nada. O vazio de quando o pensamento liga para só então as lembranças palidamente tomarem o coração instalou-se de tal maneira que por ali ficou; não tinha nome, idade e nem mesmo a façanha de há muitos anos ter enfrentado o medo do escuro e vencido. O fato de desconhecer a si mesmo lhe causava um estranhamento alheio ao próprio fato de estranhar tudo o que via. Ninguém pode se desconhecer e esperar saber dos outros, pensou, no aguardo de que viessem imediatamente trazer-lhe explicações e saciar sua sede de memória que buscava, buscava sem encontrar, sem saber de si dada a ausência de experiências passadas.
A janela com cortinas de blecaute recortava ainda mais o seu mundo agora pequeno, fazendo-lhe exigir neste exato momento que venha alguém até este quarto me explicar o que ocorre pois ninguém me perguntou se quero ficar aqui, não emiti qualquer autorização para que introduzissem em meu braço uma agulha fina que é tão fina quanto o menor fio de razão que procuro agarrar para não jogar este vaso de flores pela janela junto com todo este teatro que me envolve, alguém venha aqui agora! E um jovem de jaleco branco com a face da experiência entrou pelo quarto, pedindo ao paciente que se acalmasse. Você pode me dizer seu nome?, perguntou serenamente o intruso. A presença do médico (ou enfermeiro? tão jovem...) impôs-lhe uma vontade de conter o desespero, como quem esconde a ponta para fora do guardachuva rasgado ao encontrar algum conhecido pela rua. "Não sei", respondeu o desnomeado. Estava sem nome, e, ao invés de deter uma infinita liberdade, tinha a sensação de estar preso em uma jaula minúscula; detendo o contato com a realidade mas sem que pudesse interagir. Estas cores, você reconhece? Azul vermelho amarelo afirmou com pressa, na esperança de que o reconhecimento provasse ao outro que deitado na cama se postava alguém em sã consciência, posto que sem identidade.
Outras perguntas se seguiram. A cada oportunidade, respondia mais do que lhe era pedido, a fim de que com a descrição de trivialidades viesse-lhe a complexidade do passado. Cada resposta completa continha a missão de, mais do que convencer ao inquisidor, convencer ao próprio homem de que, se conseguia acertar as cores e formas geométricas, conseguiria olhar para si mesmo e se saber.
Em meio à hesitação de dois segundos do jovem de avental, entrecortou: quem sou eu? Após ouvir a própria pergunta é que percebeu como soava absurda. Entretanto, não havia outra questão a ser formulada, visto esta ser a grande dúvida que lhe queimava dentro. Um homem de mãos peludas que não se lembrava dos primeiros pelos, de unhas cortadas sem saber quando as aparou, macho sem conhecer uma fêmea. A expectativa recaía no desconhecido à sua frente que, pelo que sabia, nunca avistara, mas em cujas palavras depositava todas as esperanças de apaziguamento. O raciocínio perfeitamente normal corroía-lhe as entranhas, dado que a saúde em dia lhe permitia visualizar todo campo – e, consigo, o vazio – que o branco na memória proporcionava. A angústia maior já descobrira: não poder configurar seus próximos passos por não se lembrar de como fazia antes.
- Há alguns pertences que podem lhe ajudar – afirmou o homem de avental, com a voz da verdade. Poderia falar em uma língua totalmente desconhecida; mesmo assim, qualquer um compreenderia que sua autoridade era inquestionável. Ainda assim, avisou que voltaria.
Saiu da sala e nunca mais voltou.
O homem sem memória morreu e, mais triste do que não ter feito falta para ninguém, não fez falta para si mesmo. Seu nome era Susano.