Fazia apenas dois dias que eu me mudara para um apartamento de quatro quartos, a ser dividido com três italianas. Decidi dar uma volta de reconhecimento na zona e encontrei um sebo bastante simpático. Abri a porta de vidro e ouvi o barulho de sinos se batendo. Ninguém estava no caixa. O lugar tinha dois andares, cada qual com um pé-direito um pouco baixo. As paredes eram de um amarelo-queimado aconchegante e combinavam com as estantes de madeira que deslizavam pelo corredor, como se a livraria toda me desse um abraço. Ali eu estava sozinho.
Subi para o segundo andar onde se localizavam os livros de ficção. Ainda mais baixo do que o térreo, tive a impressão de que estava em uma casa de anões. Não era preciso me curvar para me locomover, mas também era impossível ficar na ponta dos pés. Naquele lugar, o importante eram os livros, não as pessoas. Caminhei um pouco por aquele ambiente empenhado a me provocar qualquer impressão de nostalgia ou saudade. Não aquela melancolia triste de algo que acabou antes do seu prazo, mas de algo que teve seu fim na hora certa. Se fosse prolongado por um pouco mais, teria dado errado. Porém ali tudo seguiu seu curso certo.
"Ficção em português/espanhol", dizia uma etiqueta. Paulo Coelho, Gabriel Garcia Marquez e José Saramago eram os mais conhecidos. Em um canto escondido, Sputnik, Mi Amor, de Haruki Murakami. Traduzido em espanhol, o livro estava barato e bem conservado. Sentei-me no chão e comecei a ler a primeira pagina. Poucos minutos em seguida, sou interrompido. "Você quer alguma ajuda?", me pergunta o que parecia ser o (talvez único) atendente. Era um francês da minha altura e idade. Poderia muito bem ser meu colega em qualquer aula na faculdade de letras. Talvez estudasse la. "Oi, não precisa, não... Encontrei um livro de um autor que gosto bastante...", respondi. Ele sorriu e disse que estaria por perto se eu precisasse de algo.
Talvez o sebo fosse da família e ele trabalhasse la a pedido dos pais. Ou sera que ele quem quis? Tinha cara de quem gostava de ler. Falou com calma e transmitiu serenidade na voz. Talvez fosse daqueles estudantes de letras que trabalham em livrarias para ter tempo de ler tudo o que desejam e ainda ter tempo de escrever. Tinha cara de quem era assim. Entretanto, quando a gente quer todo mundo tem cara de algo, então no final das contas tudo poderia ser o contrario, não passando de múltiplas projeções oriundas de uma mente desocupada.
Poucos instantes apos me interpelar, ele voltou.
- Você não é francês, não é mesmo?
- Não... Sou brasileiro - disse com um sorriso no rosto.
Quando a gente fala que é do Brasil é bom ter um sorriso no rosto. Da a impressão de sermos simpáticos. No fim deu certo: ele se aproximou e começou a fazer toda a sorte de questões sobre o porquê de eu ter vindo para a França, onde tinha aprendido francês, o que estudava e que tipo de livros eu gostava. Mostrei o que eu segurava nas mãos e ele elogiou minha escolha. "Este japonês é muito bom. Aqui na França as pessoas estão gostando muito dele." No Brasil também, faz alguns anos que uma grande editora decidiu traduzir. Na França também, ele respondeu, depois que o Le Monde fez uma critica, todos foram atras.
E assim seguimos falando. Descobri que ele cursava Francês e Inglês. O sebo era dos tios, e ele trabalhava para ganhar algum dinheiro. Falava bastante para um francês, visto que não me conhecia. E tinha uma característica que aprecio bastante: sorrir enquanto fala. Além disso tinha os dentes bonitos. Tinha um rosto bonito também. Vestia uma calça jeans verde e uma camisa polo branca. No pulso, um relógio cinza marcava o horário. Era um francês agradável aos olhos.
Decidi levar o livro apenas por causa dele. Descemos ao primeiro andar e paguei sete euros. Agradeci e desejei uma boa tarde. "Até outra hora", ele respondeu. Fitou-me com os olhos e continuou sorrindo. Até, eu disse. Sorri também e fui embora, e antes de abrir a porta, ainda olhei para trás. Ele seguia sorrindo.
Nunca mais o vi. De fato havia me esquecido da situação, e apenas me lembrei dias atras, quando passei de bicicleta por acaso em frente ao sebo. Lembrei-me da sensação de paz e contentamento que fiquei logo apos sair daquele lugar. Eu poderia ter pedido seu telefone ou o chamado para um café. Poderíamos ter-nos conhecido melhor e quem sabe nos apaixonarmos, assim como poderíamos ter tomado um café e desagradado um ao outro. Entretanto, certas coisas começam e acabam na hora certa e justa. Daí um tempo depois a gente se lembra e fica com aquela nostalgia amarela, com a certeza de que algumas vivências poderiam ter milhares de outros finais, mas aquele que aconteceu não chega a ser ruim. Pelo contrario, a expectativa de um futuro deixa um gosto bom na boca. Algo de quero mais, como um bom pedaço de torta de uma padaria cara, onde a gente vai só uma vez para dar um pouco de prazer à nossa vida pacata.