Nossa conversa não era estranha mas totalmente normal, ele acabara de voltar do trabalho, e eu já me preparava para sair com o cachorro - fedendo a cachorro, precisava de um bom banho. Eu já calçara o tênis, e ele disse, espera, a gente precisa conversar. Notei uma urgência no timbre da sua voz, assim como no seu olhar: um pouco cansado até. E na minha paranoia desatei N motivos mais X razões para que estivesse cansado - do trabalho ou de mim?. Eu disse, precisa ser agora? o cachorro precisa fazer..., e ele disse, vai-te rápido que eu espero. Fui-me com pressa até as primeiras árvores em frente ao prédio, já deduzindo mais outros motivos para o cansaço no seu olhar - será que era cansaço mesmo? talvez eu tenha visto errado...; arquitetei várias possíveis discussões entre nós dois mais várias possíveis fugas para mim: tenho esse meu jeito fuga que me faz projetar o futuro quando o futuro não é tudo o que posso ter, o futuro é apenas um furo no viver de agora e não me digam nada, pois sei que preciso ter um chão em todas as situações e preciso ter razões em todas as minhas ações de maneira que eu sempre tenha ideia do que vá acontecer comigo, é meu instinto de sobrevivência que me faz assim.
Abri a porta e o cachorro entrou em direção a ele. Tirara o casaco preto do corpo, assim como seus sapatos pretos. Disse-me, senta aqui, por favor, dirigindo-se à nossa mesa de vidro (nunca soube porque eu quis tanto comprar uma mesa de vidro; ele dizia: "mas que coisa mais feia isso, tão careta, parece revista de decoração", e eu dizia que seria intransigente nessa decisão. Escolhi essa mesa porque era transparente e tudo o que é transparente me agrada, de maneira que não gosto de nada escuro, preciso de nitidez em toda a minha vida, não posso lidar com coisas embaçadas; precisava daquela mesa pois sabia que um dia precisaria da sua transparência para analisar todos os gestos: balançar de pernas e mexer dos seus pés; de modo que pudesse desvendar toda a sua linguagem corporal e de modo que tivesse toda uma vantagem numa possível conversa: todas as cenas são cenas de batalha e um bom guerrilheiro é aquele que está sempre a frente: não só sua boca conversaria comigo: mas seus gestos também, seriam seus gestos a conversar comigo e eles não me omitiriam nada). Reuniu minhas duas mãos nas suas. Estavam quentes, tinham um aquecer interno que emanava calor por todos os poros. Acho que ele era meu sol. Disse:
- Tu me amas? - e olhou fixamente para meus olhos, e meus olhos se fixaram nos seus olhos e eu não conseguia responder, não pensava em nada pois toda a minha energia dirigira-se aos meus olhos para que meu olhar correspondesse ao seu; tinha medo de que meu olhar fosse fraco, e ele se desapontasse, até mesmo tinha medo de que se eu não tivesse um olhar forte, não conseguiria entender o seu olhar.
- Por que fazes perguntas como essas se bem sabes que ainda não aprendi a me entender, pois o que posso sentir hoje pode ser apenas uma paixão, sim, paixão há mais de anos, quem pode saber?, posso sentir amor mas posso não reconhecer, tens coragem de colocar-me num muro com tijolos que não sei como ali foram parar?
Apertou mais forte minhas mãos e disse:
- Por que temes me dizer o que sentes por mim pois não vês que apenas quero que me confirme algo de que preciso saber, não vês que não é por ti que deves dizer alguma coisa, mas por mim, que posso fazer se deves rotular o que sentes? é assim que tudo funciona, tudo precisa ser rotulado para que possa ser explicitado; toda a vez que transpomos um pensamento para palavras, podamos parte do transmitir deste pensamento e rotulamos tudo o que nele envolve, mas o que há de se fazer? pois não leio pensamentos e só te peço, só te peço que digas o que sentes por mim - disse num palavreado tenso com intensidade forte, foram palavras fortes travestidas numa voz aveludada.
- Mas sabes o que sinto por ti se até hoje estou aqui, não? para que precisas de confirmação? - eu disse numa voz que não foi falha nem trêmula, numa voz intensa como quem diz uma ordem: não foi uma ordem para mim, mas para ele, eu ordenei a ele que era importante para mim. - Mas ficarás comigo até quando?, ele perguntou. Ouvi com clareza as suas palavras, mas não entendi o que ele disse, e ele repetiu, "até quando?", eu disse, mas até onde queres chegar nessa conversa sem sentido, pois como vou saber até quando estarei ao teu lado, como vou saber se amanhã vou chorar, pois não sou uma antena parabólica que capta sinais vindos de outras dimensões contando-me o que virá logo em seguida, o que esperas de mim como resposta a uma pergunta como esta, se não acho sentido para o que falas e tuas pernas não se movem e teus pés estão do mesmo jeito desde que iniciamos esta conversa e tuas mãos me apertam fortemente unidas numa troca de energia, diga-me, de que me adiantou comprar uma mesa de vidro se faze-me perguntas sobre o futuro e o amanhã?
Falou-me para parar de tentar achar razões e cifrões no incalculável. Me diz, ficarás ao meu lado até quando?, finalizou. Tentei puxar minhas mãos de volta a mim. Não deixou, segurando-as fortemente como se fossem a única salvação para um pântano de sangue, e, neste momento - neste momento percebi que ele não estava mais com um ar jovial de sempre, não estava mais com pele lisa e topete no cabelo. Sua pele caíra. Apareceram rugas em sua face antes jovem, pés-de-galinha dominaram o em redor de seus olhos e cabelos brancos se apossaram de todo o seu couro cabeludo. Eu disse, o que houve com você?, e ele disse: - Responda-me agora. Me amarás até amanhã? - e de repente comecei a chorar porque sua voz saíra rouca e envelhecida, não havia mais aquele aconchegar de toda a fala, não havia aquele prazer de vida na sua melodia, só um cansaço, um cansaço morno, um cansaço igual ao de seu olhar quando entrara no apartamento e pedira para falar comigo. Olhei para suas mãos e elas estavam manchadas pelo tempo, lapidadas mecanicamente por um passar de dias, horas, anos, que lhe deixavam marcas fortes, manchadas pelo sol e arranhadas pelo vento. Com uma voz proferida por cordas vocais gastas e rígidas, disse:
- Diga-me agora o motivo que te fez ficar comigo por esses poucos anos, diga-me agora porque te encantei desde o primeiro momento em que nos apresentaram, dá-me uma prova de que me amarás até amanhã. Não, diga-me antes, me amarás até amanhã?
- Não tenho motivo para justificar minha presença por esses poucos anos ao teu lado, não sei dizer porque me encantaste desde o primeiro momento em que nos apresentaram pois se tu não sabes explicar, tampouco sei eu; sei de uma força cósmica que me fez plantar ao teu lado para que me alimentasses, me cuidasses, me protegesses, assim como eu fiz contigo: porque eu sou tua planta assim como tu és minha planta: vivemos juntos num mesmo jardim e somos um o jardineiro do outro, protegendo da chuva escassa e do sol em excesso, podando ervas-daninhas e frutos infrutíferos, unidos, juntos, contra pragas desconhecidas lançadas por algum ser que desconhecemos: cuidaste tanto de mim por esses poucos anos que, involuntariamente, plantaste a semente de algo que não consigo rotular: traga-me biólogos renomados e cientistas famosos pois não reconheço esse ser que cresce dentro de mim todos os dias: hora a hora tornando-se mais forte: hora a hora doando seu calor. E se é amor, não sei, se é calor, também não saberei. Sei que tenho esta certeza dentro de mim, não plantada por ti, mas cultivada por mim, dizendo-me que ficarei contigo até o amanhã e o depois.
Suas mãos gastas apertaram minha mão, aquecendo-me do mesmo jeito que fizera há alguns minutos (ou anos?) antes. Aproximei-me lentamente e beijei seus lábios secos. Acariciei sua pele enrugada. Afastei-me e senti seu olhar afogar-me num lago de águas quentes: olhar intenso e vivo, disposto a tudo o que pudesse existir. Neste exato momento - precisamente neste exato momento, chorei ainda mais, pois percebi que, para ele, o amanhã não chegaria.