domingo, 28 de março de 2010

Metamorfose




(Os mortos querem licença
para morrer mais.)
Lya Luft

Hoje parte de mim morreu na esquina, naufragada numa chuva fina que só sabe deixar-nos úmidos. Foi enquanto eu ia ao supermercado comprar algo. Pensei em diversas bobagens hoje cada ação que fazes afeta não só teu presente e teu futuro mas todas outras futuras gerações pois se escolhes ficar com alguém hoje e ter filhos amanhã, teus filhos recordarão de uma história recente iniciada por ti; mas se escolhes ficar com outro alguém em outra semana, será outra história com outras recordações e outras personagens que por sua vez farão outros caminhos e poderão ter um papel importante para ainda outras personagens e quem sabe não saia um filósofo ou cientista revolucionário? quem sabe um serial killer: mas será, será que estamos preparados para afetar a História como um todo? As pessoas dão pouco valor ao seu valor, pois se estamos aqui é evidente que temos um poder de fazer uma diferença na vida de todos já que: no momento em que convivemos em uma comunidade, temos determinado poder de afetá-la, de modo que tal poder é diretamente proporcional à consciência própria de si e desse próprio poder, proporcional ainda à posição de influência. Mas não há motivo para desespero, visto que não é preciso de posição social para influenciar os outros, há poder de influência em cada pedaço do nosso corpo. Um desses pedaços se descolou do meu corpo e morreu na esquina, debaixo de chuva fina, e, precisamente ali, vendo parte de mim caída na chuva, parte de mim morreu e o espaço vazio foi preenchido por uma outra parte, talvez mais evoluída, talvez involuída, nada sei, nem há como saber. Mas continuei andando, mas continuarei andando: eu tenho o meu todo mesmo sem parte e também sei que somos seres metamorfos. Entretanto, tenho agora nas minhas horas que a parte

morta é parte dos meus dias,
pois sempre se morre,
e sempre se revive.

- Hoje não como até morrer.
Essa é minha penitência,
meu lidar sem saber o que fazer.

(Assim faz o ser humano,
cultivando as faces limpas,
podando a parte em dano.)

Pois sempre se morre,
e sempre se revive.

quarta-feira, 24 de março de 2010

domingo, 21 de março de 2010

Vem navegar




E se, juntos, somos um oceano de ideias,
separados somos: ?

E se separados somos saudade e mistifcação,
juntos somos: ?

E se, juntos, somos uma tempestade de emoções,
separados somos: ?

E se separados somos lembranças fracas de
sensações excruciantes,
juntos somos: ?

Juntos olhamos para os olhos do outro e vemos tudo aquilo que poucos veem: nada. Porque todos abrem os olhos e olham pessoas, prédios, carros, árvores e insetos. Mas quando nos olhamos vemos nada, pois tudo o que existe se reduz a uma pequena molécula que não captamos, compenetrados na energética visão: um do outro.

Hipnose é tudo aquilo
que define a
retidão do teu olhar.

Hipnose é tudo isto
que controla
o meu calar.

(Meus desejos
navegam no teu mar
definindo meu jeito
imperfeito de me apaixonar.)

sexta-feira, 19 de março de 2010

Resgate



Cego para te ver
surdo para te ouvir
(eu) mudo para me comunicar
morto para te satisfazer.






*Essa poesia é bem velha, mas me deu vontade de colocar aqui de novo.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Pergunta



Aqui se definem as cores da própria mutilação, se degrine todo o bem-estar do teu bem-ser, aqui é um regime de ser-bem sem mal que tem. Porque se tem muito mal, mas não se entra tal que se perceba essa presença em anonimato. No anonimato a gente se esconde, no anonimato a gente se defende, porque todos os detalhes passam por ele, nada fica, tudo sai. Esse anonimato que é tão almejado por uns e repelido por outros, você já percebeu quem o quer e quem não o quer? Então vai e percebe, são coisas que se descobrem apenas por observar. Observando a gente vê, observando se descobrem

mãos que entrelaçam mãos num escuro indecifrável a visões deste e de outros mundos, visíveis somente aos sentidos - daqueles que se sentem:

bocas mudas, mas olhares falantes, olhares que conversam e falam falam falam por dezenas de minutos em apenas quinzenas de segundos:

toques metodicamente planejados, braço com braço, cotovelo com cotovelo, tudo numa prática mística de troca de calores, hormônios, e sentires, pois eu sinto, tu sentes, mas todos nós sentimos tantos sentires que é preciso muita atenção para sentir cada sentir, posto que todas as pessoas sentem, mas a maioria não sabe que sentiu; isso é o existir mas não viver.

Vivemos esse viver anônimo,
mas não somos anônimos.
Somos eu e você e várias coisas,
mais que nós
- menos que todos os
sentidos.

Procuro procuro um porquê para
você, mas só em você,
que não acho minhas respostas.
(E me enlouqueço, menos por mim,
mais por ter um não-ter
que me distrai.)

Às vezes, somos assim:
temos perguntas que não criamos,
respostas que invetamos.

Quem garante que nossa resposta
é a correta?
Nada nem ninguém que nos distrai,
pois apenas se abstrai
aquilo que queremos.

Ainda assim, acho
que você é uma
pergunta.

domingo, 14 de março de 2010

Jardineiro Fiel



Acho que já posso dizer que sou um universitário. Acabei de fazer 17 anos e entrei num clima que nem sei se compreendo - e talvez esse seja meu maior problema, porque tento compreender coisas que não pedem para ser compreendidas - e crio problemas que não existem, pelo simples fato de pensar demais sobre as coisas - e nesse erro, tento achar soluções para esses problemas que não existem - e não acho - e fico triste e com sensações de vazios por não ter as respostas para perguntas que não precisavam ser feitas. Mas não acho que eu seja complicado, mesmo que minha meus pais digam ("desde pequeno tu era meio diferente").  Eles dizem que desde pequeno eu fazia muitas perguntas, era muito curioso: "Pensando bem, Jornalismo é para ti, a tua cara" (mas se eu quisesse fazer Dança, eu teria cara disso? E se quisesse fazer Análise de Políticas e Sistemas de Saúde?). Acho que estou prestes a me encontrar no meu caminho, nos meus


trilhos de trem?
Crio crio e não retiro:
vou num vai-e-vem que não percebo,
nessas escolhas que se faz
e não se vê.

Eu me vejo,
mais que vez em quando

- ao estar sozinho,
sentado no ônibus.
Parado e pensando
nessa vida provisória que possuo,
nas escolhas que marco e não recuo.

Ando caminhando por gramas novas,
plantando o não-plantado.
Se pequei? Hoje não sei.
Mas me comunico, mesmo calado.

Estes que me compreendem,
é que aprecio.
Porquê, para eles, não falo nada:

mas transmito tudo



*Feliz Dia Nacional da Poesia

segunda-feira, 8 de março de 2010

Parênteses

Tava pensando agora que se eu tivesse nascido um mês antes ou depois do meu aniversário, teria uma vida completamente diferente (não por eu ser de Peixes, isso também, mas pelo fato de que um dia a mais ou a menos na nossa vida podem fazer toda a diferença, em um dia a mais de vida a gente tem 24hrs excedentes de experiência e em cada hora: em cada minuto pode-se passar por ações marcantes e situações sufocantes na pele de um bebê - sem razão para discernir e sem inteligência para distinguir vozes, entonações, palavras e exclamações) (e se nesse um mês a menos que não vivi escapei de um grande trauma, ou quem sabe de um felicidade excruciante? eu seria diferente hoje? talvez mais feliz ou amargo. Se nascesse em março eu talvez fosse mais feliz pois teria menos tempo de vida e em menos tempo tendemos - digo "tendemos" - a ser mais ignorantes e, portanto, mais felizes: pois com esse menor viver temos menos informação em relação ao que se passa em redor e, consequentemente, menos preocupações para ocupar-se; mas agora penso - agora penso, será que isso é uma verdadeira felicidade? e quem pode dizer o que é uma felicidade verdadeira ou falsa?, porque me parece ser deveras arrogante dizer que uma felicidade é falsa pois pressupõe-se: supõe-se que aquele quem julga sabe do que fala e domina uma informação privilegiada pra poder julgar, no caso, reconhecer a felicidade verdadeira, podendo fazê-lo por ter experimentado-a e e apreciado-a; mas, enfim, então todos que julgam são arrogantes?) (hoje tive meu primeiro contato com a universidade e não sei o que falar sobre - festa festa festa? Nem sei. Ao invés de ter História da Comunicação, entrevistaram todos os bixos num auditório sobre a posição sexual favorita e eu pensei - pensei, bem-vindo à UFRGS).
Decerto sou um peixe
certo que me deixe ser de algo
- coisa ou objeto.
De certo a indireto,
assim ou assado.

Incerto que sou,
fraco mas direto.
Não acerto mas concerto
algum erro que sobrou

(mas não vá,
não vá viver o já
vivido...).

-
Ganhei um concurso de redação da Zero Hora, maior mídia impressa daqui do RS, quem quiser ler:

http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a2825830.xml&template=3898.dwt&edition=14217§ion=1003

quinta-feira, 4 de março de 2010

Antena Parabólica

Nossa conversa não era estranha mas totalmente normal, ele acabara de voltar do trabalho, e eu já me preparava para sair com o cachorro - fedendo a cachorro, precisava de um bom banho. Eu já calçara o tênis, e ele disse, espera, a gente precisa conversar. Notei uma urgência no timbre da sua voz, assim como no seu olhar: um pouco cansado até. E na minha paranoia desatei N motivos mais X razões para que estivesse cansado - do trabalho ou de mim?. Eu disse, precisa ser agora? o cachorro precisa fazer..., e ele disse, vai-te rápido que eu espero. Fui-me com pressa até as primeiras árvores em frente ao prédio, já deduzindo mais outros motivos para o cansaço no seu olhar - será que era cansaço mesmo? talvez eu tenha visto errado...; arquitetei várias possíveis discussões entre nós dois mais várias possíveis fugas para mim: tenho esse meu jeito fuga que me faz projetar o futuro quando o futuro não é tudo o que posso ter, o futuro é apenas um furo no viver de agora e não me digam nada, pois sei que preciso ter um chão em todas as situações e preciso ter razões em todas as minhas ações de maneira que eu sempre tenha ideia do que vá acontecer comigo, é meu instinto de sobrevivência que me faz assim.

Abri a porta e o cachorro entrou em direção a ele. Tirara o casaco preto do corpo, assim como seus sapatos pretos. Disse-me, senta aqui, por favor, dirigindo-se à nossa mesa de vidro (nunca soube porque eu quis tanto comprar uma mesa de vidro; ele dizia: "mas que coisa mais feia isso, tão careta, parece revista de decoração", e eu dizia que seria intransigente nessa decisão. Escolhi essa mesa porque era transparente e tudo o que é transparente me agrada, de maneira que não gosto de nada escuro, preciso de nitidez em toda a minha vida, não posso lidar com coisas embaçadas; precisava daquela mesa pois sabia que um dia precisaria da sua transparência para analisar todos os gestos: balançar de pernas e mexer dos seus pés; de modo que pudesse desvendar toda a sua linguagem corporal e de modo que tivesse toda uma vantagem numa possível conversa: todas as cenas são cenas de batalha e um bom guerrilheiro é aquele que está sempre a frente: não só sua boca conversaria comigo: mas seus gestos também, seriam seus gestos a conversar comigo e eles não me omitiriam nada). Reuniu minhas duas mãos nas suas. Estavam quentes, tinham um aquecer interno que emanava calor por todos os poros. Acho que ele era meu sol. Disse:

- Tu me amas? - e olhou fixamente para meus olhos, e meus olhos se fixaram nos seus olhos e eu não conseguia responder, não pensava em nada pois toda a minha energia dirigira-se aos meus olhos para que meu olhar correspondesse ao seu; tinha medo de que meu olhar fosse fraco, e ele se desapontasse, até mesmo tinha medo de que se eu não tivesse um olhar forte, não conseguiria entender o seu olhar.

- Por que fazes perguntas como essas se bem sabes que ainda não aprendi a me entender, pois o que posso sentir hoje pode ser apenas uma paixão, sim, paixão há mais de anos, quem pode saber?, posso sentir amor mas posso não reconhecer, tens coragem de colocar-me num muro com tijolos que não sei como ali foram parar?

Apertou mais forte minhas mãos e disse:

- Por que temes me dizer o que sentes por mim pois não vês que apenas quero que me confirme algo de que preciso saber, não vês que não é por ti que deves dizer alguma coisa, mas por mim, que posso fazer se deves rotular o que sentes? é assim que tudo funciona, tudo precisa ser rotulado para que possa ser explicitado; toda a vez que transpomos um pensamento para palavras, podamos parte do transmitir deste pensamento e rotulamos tudo o que nele envolve, mas o que há de se fazer? pois não leio pensamentos e só te peço, só te peço que digas o que sentes por mim - disse num palavreado tenso com intensidade forte, foram palavras fortes travestidas numa voz aveludada.

- Mas sabes o que sinto por ti se até hoje estou aqui, não? para que precisas de confirmação? - eu disse numa voz que não foi falha nem trêmula, numa voz intensa como quem diz uma ordem: não foi uma ordem para mim, mas para ele, eu ordenei a ele que era importante para mim. - Mas ficarás comigo até quando?, ele perguntou. Ouvi com clareza as suas palavras, mas não entendi o que ele disse, e ele repetiu,  "até quando?", eu disse, mas até onde queres chegar nessa conversa sem sentido, pois como vou saber até quando estarei ao teu lado, como vou saber se amanhã vou chorar, pois não sou uma antena parabólica que capta sinais vindos de outras dimensões contando-me o que virá logo em seguida, o que esperas de mim como resposta a uma pergunta como esta, se não acho sentido para o que falas e tuas pernas não se movem e teus pés estão do mesmo jeito desde que iniciamos esta conversa e tuas mãos me apertam fortemente unidas numa troca de energia, diga-me, de que me adiantou comprar uma mesa de vidro se faze-me perguntas sobre o futuro e o amanhã?

Falou-me para parar de tentar achar razões e cifrões no incalculável. Me diz, ficarás ao meu lado até quando?, finalizou. Tentei puxar minhas mãos de volta a mim. Não deixou, segurando-as fortemente como se fossem a única salvação para um pântano de sangue, e, neste momento - neste  momento percebi que ele não estava mais com um ar jovial de sempre, não estava mais com pele lisa e topete no cabelo. Sua pele caíra. Apareceram rugas em sua face antes jovem, pés-de-galinha dominaram o em redor de seus olhos e cabelos brancos se apossaram de todo o seu couro cabeludo. Eu disse, o que houve com você?, e ele disse: - Responda-me agora. Me amarás até amanhã? - e de repente comecei a chorar porque sua voz saíra rouca e envelhecida, não havia mais aquele aconchegar de toda a fala, não havia aquele prazer de vida na sua melodia, só um cansaço, um cansaço morno, um cansaço igual ao de seu olhar quando entrara no apartamento e pedira para falar comigo. Olhei para suas mãos e elas estavam manchadas pelo tempo, lapidadas mecanicamente por um passar de dias, horas, anos, que lhe deixavam marcas fortes, manchadas pelo sol e arranhadas pelo vento. Com uma voz proferida por cordas vocais gastas e rígidas, disse:

- Diga-me agora o motivo que te fez ficar comigo por esses poucos anos, diga-me agora porque te encantei desde o primeiro momento em que nos apresentaram, dá-me uma prova de que me amarás até amanhã. Não, diga-me antes, me amarás até amanhã?

- Não tenho motivo para justificar minha presença por esses poucos anos ao teu lado, não sei dizer porque me encantaste desde o primeiro momento em que nos apresentaram pois se tu não sabes explicar, tampouco sei eu; sei de uma força cósmica que me fez plantar ao teu lado para que me alimentasses, me cuidasses, me protegesses, assim como eu fiz contigo: porque eu sou tua planta assim como tu és minha planta: vivemos juntos num mesmo jardim e somos um o jardineiro do outro, protegendo da chuva escassa e do sol em excesso, podando ervas-daninhas e frutos infrutíferos, unidos, juntos, contra pragas desconhecidas lançadas por algum ser que desconhecemos: cuidaste tanto de mim por esses poucos anos que, involuntariamente, plantaste a semente de algo que não consigo rotular: traga-me biólogos renomados e cientistas famosos pois não reconheço esse ser que cresce dentro de mim todos os dias: hora a hora tornando-se mais forte: hora a hora doando seu calor. E se é amor, não sei, se é calor, também não saberei. Sei que tenho esta certeza dentro de mim, não plantada por ti, mas cultivada por mim, dizendo-me que ficarei contigo até o amanhã e o depois.

Suas mãos gastas apertaram minha mão, aquecendo-me do mesmo jeito que fizera há alguns minutos (ou anos?) antes. Aproximei-me lentamente e beijei seus lábios secos. Acariciei sua pele enrugada. Afastei-me e senti seu olhar afogar-me num lago de águas quentes: olhar intenso e vivo, disposto a tudo o que pudesse existir. Neste exato momento - precisamente neste exato momento, chorei ainda mais, pois percebi que, para ele, o amanhã não chegaria.

terça-feira, 2 de março de 2010

Vem comigo para o incrível

(Talvez eu precisasse é dos silêncios)
Reverberação, Para não dizer adeus, Lya Luft


Porque estávamos um a um em minha casa numa madrugada quente e horrível. Súavamos como se tivéssemos a recém tomado um banho quente, talvez fosse o mundo que estivesse suando e nós não - e gotas salgadas saíam da minha nuca, centímetro por centímetro, perspassando minha coluna como se fossem leves dedos para dançar em minhas costas. Não lembro que filme víamos, desses

filmes que nós vemos só por ver, como quando vamos ao cinema automaticamente e, quando nos demos conta, começa a rodar Alvin e os Esquilos. Acho que era drama. Mas não era isso o que importava pois assistíamos a um drama antigo antigo antigo, e Ela sabia que eu não gostava de filmes antigos, sabia que eu não tinha paciência com nada que fosse antigo: e por isso me chamava de Campos, Álvaro de Campos; eu não falava nada, só ria ria ria visto que não sou daqueles caras fissurados em tecnologia - geek ou algo parecido? às vezes um rockzinho britânico. Eu era o rockzinho britânico, e Ela era minha baladinha melódica - tem algo mais chato que isso? éramos autossuficientes musicalmente falando, independentes amorosamente cantando, fotossintetizantes de felicidade: e meus amigos brincavam dizendo,

o Álvaro tá com a guria há 2 anos e eles nunca se pediram em namoro. Mas é porque isso não funcionava conosco, não o namoro, isso funcionava, mas Namoro não dava certo pois: não precisávamos trocar alianças, não precisávamos chamar o outro de namorado, mudava alguma coisa? Uma amiga dEla, toda metida à psicóloga veio dar o ar da graça ao dizer que eu tinha medo de fixar compromisso, e sabe o que eu disse? Eu disse que quando ela aguentasse ficar junto com alguém por mais de 2 meses, que viesse falar comigo. Ficou quieta, e Ela apertou a mão como quem diz: - você foi mau mas eu faria o mesmo. Pelo menos nós conseguíamos nos

acertar, mas também não é isso o que importa.. Estávamos assistindo a um drama na minha cama e a tv brilhava e o corpo não suportava aquele calor absurdo e o ventilador tentava - vencer o que não podia, era só um paliativo. Olhei para a tv e vi como era medíocre as pessoas esfolarem a pele o dia todo todo dia (numa Porto Alegre fria) para comprar uma tv de dez mil reais. E passam o dia todo fazendo coisas que não gostam - uns gostam, esses são os mais sortudos (ou lúcidos) -, aguentam desaforos de chefes e clientes, então: no final do mês, vão às Casas Bahia e desaforam atendentes; parcelam em 12 vezes uma tv sendo que já têm outra em casa e fazem uma festinha com os amigos para mostrá-la, o mundo é tão escroto assim? eu pensei. Pensei pensei pensei e Ela olhou para mim e disse, tu tá tendo uma brainstorm?, e eu disse, quê?, e ela disse,

não percebes mas às vezes estás sentado em uma posição qualquer fazendo algo comum e de repente teu espírito percebe que está envolvido em toda essa normalidade anormal para ambos - carne e espírito - e então como reação ele usa de mil maneiras mil lugares para fugir de toda essa redoma que parece te prender: todo e qualquer objeto ou ação ordinária serve como gatilho para que fujas dessa condição de mais um no mundo: e te pões em outros mundos e te jogas em outros planetas onde habitam pensamentos figurados: bem sei que ficas nu nesses planetas e também desnuda tudo o que neles há, mas não tenho ciúme não te preocupes pois também sei que esta é só mais uma maneira tua de fugir e avançar ao teu viver.

Olhei para Ela e sorri. Acariciou meu rosto e tornou a virar para a tv. Olhei um pouco para seu rosto olhos nariz e boca e quando virei à tv, senti um calafrio e uma vontade de vomitar: mas o vômito não veio pois meu corpo permaneceu parado. Agora havia uma tv de dez mil reais à nossa frente passando um drama bem irreal: éramos nós dois, eu e Ela, correndo dentro da película. Íamos a cinemas e bares, eu a buscava na faculdade e Ela me esperava no trabalho. Tentei falar algo mas fiquei mudo: para mim ou para o mundo? Até hoje não tenho certeza, mas o que é certo é que conhecia tudo o que se passava ali e: momentos de nostalgia tomaram meu corpo até que Ela apareceu no parque da Redenção cheirando heroína, e eu pensei, mas o que é esse absurdo? e heroína não é de se picar?, mas Ela cheirava heroína depois de fumar um baseado. Olhei para a mulher que estava ao meu lado, era Ela ainda?: o rosto de feições gentis apenas balançava a cabeça negativamente; eu não entendia nada nada nada mas sentia que devia olhar o filme. A mulher passeava pela redenção com olhares intensos e olhava tudo tudo tudo e às vezes dançava, acho que era o efeito da droga. Vomitou, e nesse momento perdi a vontade de vomitar, acho que ela vomitou por nós dois pois vomitou tanto, mas tanto, que senti que eu era ela e meu vômito era vômito dela. O filme

seguiu, e a mulher (ou Ela?) foi numa boate onde às vezes eu também íamos. O homem ali era Eu e fazia as mesmas coisas. Era uma boa representação - se não era reação a uma ação já antes projetada. A mulher foi ao banheiro e cheirou um pouco de pó com uma nota de cinco reais que o homem (ou Eu?) havia dado para que comprasse uma cerveja. Olhei mais uma vez para Ela, sentada à minha cama, e só reparei nas lágrimas que lhe caíam sobre as bochechas: talvez este tenha sido meu maior erro pois não reparei no olhar, na sua expressão, pois somente as lágrimas me chamaram a atenção - portanto hoje não posso afirmar o que dizia sua expressão. O filme passava e mais cenas desconhecidas apareciam, a mulher se drogava drogava drogava e quando via o homem, aparentava normalidade. Pensei em sair da cama e fugir para a rua esperando que um carro me atropelasse mas não consegui, na hora lembro que achei que devia ficar mesmo, as coisas não acontecem por acaso (mas que absurdo de acaso poderia ser este?). Finalmente

a mulher pegou um táxi e o taxista perguntou onde vamos? e ela disse, para o primeiro viaduto que tiver. Era o da Borges. Pagou o homem e saiu do carro a passos leves - tinha uma bota de salto alto, preta, de couro. Ajeitou o cabelo crespo e olhou para às arvores lá embaixo, os carros que passavam e os postes que iluminavam. Sentou-se no parapeito e fumou um cigarro, deixando marcas de batom vermelho na bituca. Na hora pensei no nojo que Ela tinha por cigarro, até brigava com o irmão para que largasse. Mas isso não importa, o que importa é o importante, e a mulher subiu no parapeito, olhou para baixo e pulou. Pessoas ao redor gritaram, não!, contudo a maioria ficou quieta colocando a mão na boca. Segundos depois, ouviu-se o baque lá embaixo e freadas de carros tentando não matar quem já estava morta. A câmera, vindo de cima, gradativamente focou o corpo estatelado: banhado em sangue: e com fraturas expostas. Pouco a pouco a imagem comemçou a desaparecer. O filme se encerrou. Olhei para o lado e Ela jazia morta na cama, de olhos fechados porém com o corpo quente. Quente de sangue, inflamado de amor.