sábado, 9 de abril de 2011

As três damas

Conto agora a lenda da origem das 3 Damas, as mais belas e artes que um dia haverão de existir.

*

No princípio o mundo era etéreo. Não havia luz, água, terra ou ar. Tampouco morte ou vida. O espaço era tomado por absolutamente nada ao seu redor ou interior. Justamente por nada tomar tudo, tudo era tomado por nada. Todo o espaço do universo era ocupado. Ninguém clamava por revolução porque não havia necessidade. Tudo era atendido e todo o esforço compensado. Não se sabia se se poderia voar ou andar, visto que, à época, ambos eram a mesma coisa. Tudo era igual e diferente, pois não havia noção de separação. Tudo começava e terminava no mesmo lugar e no espaço. Não havia fronteiras e nem portas. Tudo era tudo e nada.

Não havia vida mas dois seres habitavam neste mundo: Música e Poesia.

Música vivia de acordo consigo mesma. Como não existiam necessidades de acordos, vivia em paz. Não tinha forma porque era dotada da capacidade de tomar a forma que quisesse. Poderia ser escorregadia como um rio - e nisso incorporava toda a substância do seu mundo, ao evidentemente não saber onde começava e terminava sua essência - ou sólida como sua vontade de ser arte. Não detinha real conhecimento do que efetivamente era um sólido, pois não havia parâmetros. Julgava o que poderia ser algo sólido tomando que deveria haver algum oposto para o que ela própria era. Se poderia ser rio, poderia também ser o contrário de rio, mesmo não fazendo a menor ideia do que isto fosse.

Poesia, pelo contrário, sempre se sentira deslocada. Nunca soube o porquê: nascera com esse deslocamento e, por tê-lo sentido sempre, incorporara-o à sua personalidade. Passara a acreditar que parte de si mesma era deslocada porque assim era para sê-lo. Não em um estado de descontentamento, visto que aprendera a lidar com o sentimento. O que lhe faltava era um corpo. Já Música não sentia falta de nada. Caso sentisse, seria do tato. Às vezes ousava dizer que parecia estar sentindo um formigamento, olha, Poesia, parece que vem algo subindo, subindo por mim e dá assim uma comichão, sabe, você não tem isso também? E Poesia dizia que não, criatura, pareces querer amargura, nem corpo tens e porém te perdes em matéria.

Em qualquer dia - ou qualquer noite, já que não havia diferença -, Poesia dirigiu-se à Música e falou-lhe

Mas que coisa engraçada isso
Que não sem força é que me toma
Pareço criar braços e um cérebro
Aliás, como penso se não faço por pensar
Como vivo se não tenho por viver
Só quero escorrer por ribeiras sem degraus, ah
Acho que estou me debatendo

Era a revolução lhe acometendo outra vez. Agora, no entanto, era diferente: parecia-lhe que leves linhas de contornos se mostravam ao redor, palidamente delineando-lhe cabelos, dedos, tronco, nariz, pés, sexo. Estava prestes a transcender. Chamou rápido pela Música, que lhe fizesse companhia ou ao menos lhe desse as mãos, a Música disse "mas não tenho mãos...", Poesia disse que não interessava e beijou-lhe os lábios. Lábios que não existiam, visto que não havia matéria. Ou havia? Poesia apenas fez um bico e beijou o nada à sua frente. Como o nada era tudo, compreendia estar beijando a Música. Era preciso descarregar a energia da revolução, que, sabia, precisava ser direcionada para fora. Foi um beijo demorado, carregado de energia carnal e espiritual e a alma que ambas não sabiam deter. Enquanto se beijavam, Música tomou traços. Eram traços mais leves do que os da Poesia, porque enquanto para esta era essencial a forma, para a outra o principal era o conteúdo. Assim, Música fechou-se em sua palidez para concentrar todo o tato que poderia deter.

Teve-o ao máximo.

Música queria um corpo para viver e poder se libertar, Música precisava de limites materiais para dar seu tom máximo, sua maior sinfonia e fazer suas notas ressoarem. Poesia, na outra via, queria libertar um pouco da forma factual que não tinha mas que, apesar disso, não a evitava de sentir comichões diárias (semanais? centenárias?) lembrando-a do que não conhecia.

Naquele momento, e talvez em todos os outros momentos, pois não havia medida de tempo, Poesia e Música se amaram, cada uma descobrindo o corpo da outra em uma exploração quase que unicamente selvagem, porquanto uma não se sabia. Uma não se sabia mas em duas haveriam de saber-se. Ambas se amaram pelo Resto dos Tempos, em mistura de gozo e lascívia.

*

Muito tempo depois (ou talvez apenas um segundo) veio Alguém fazer alguns cálculos. Se o Resto dos Tempos era o tempo da Poesia e da Música, bastava subtrair isso da Grande Era para fazer nascer a Nova Era, que as duas criaturas agora corpóreas estavam prestes a conhecer. O ponto de virada começou com um diálogo em tom de suplício, ao Poesia dizer

Música, dá-me tua mão,
Sinto algo forte que senão
Vieres
Eu temo padecer
Uma comichão gigante aqui no meio
Nisto que fica entre o sexo e o peito
Não sei o que é, Música
Uma comichão bem forte
Não sei dos meus limites
Acho que hão de se expandir, ai ai
Tem alguma coisa dentro de mim que quer falar
Está louca para dar a sua palavra
E que querida, vontade de gritar que ela tem
Acho que hei de repartir-me em duas.

Poesia estava dando à luz. Música confortou a outra da maneira que pôde. Cantou algumas canções e tocou alguns acordes. Posto que seu corpo era fraco, fraco, a que estava a parir quase não ouviu. A surdez e desconexão de ambas fez com que Música chorasse e chorasse de amargura, lembrando-se do motivo de querer tato e corpo. Apesar de ser música, não tinha matéria forte para ressoar. Então era toda só assovio, uma pequena sedução em movimentos calmos. Nas farturas, como no momento de comichão da Poesia, seus acordes valiam em nada. E chorou e chorou, não saíam lágrimas pois não havia matéria grossa o suficiente para suportá-las, então só ecoavam sons fracos através da matéria fraca das duas damas etéreas. Chorava e consolava a outra, a amada, a amargurada. Poesia se compadeceu, apertou forte a mão da companheira. Para a momentânea alegria de ambas, Música ficou com o tato aguçado, podendo sentir o toque daquela que estava a par(t)ir. Poesia chorou e chorou, suplicou à Música que amasse aquela que viria, como se fosse nossa mãe mesmo sendo nossa filha, como se fosse tu e eu juntas, unindo nossos desejos e forças e tristezas, canta uma cançãozinha para mim, querida? A querida cantou uma estrofe boba, boba, dizia

minha querida, quando vais cantar
eu quero ser o teu prodígio
se queres ser, quero te ver dançar
como teu filho

E cantou cheia de alegria e tristeza vendo a outra morrer. Inerte em braços pálidos, Poesia tombou, ainda que a canção não cessasse. E não cessou: Música cantou e cantou, chorou e chorou, quanta amargura em um ser sem corpo. Em meio ao pranto, viu uma vermelhidão do ventre da morta, que coisa engraçada, pensou, e sentiu no seu próprio corpo uma coceira. Começou a passar a unha naquilo que hoje chamam umbigo -  mas que ninguém tinha, pois nunca houvera cordão umbilical para cortar. Coçou e continuou cantando, como se sentisse um dever de manter o canto. Conforme entoava, coçava mais forte e mais forte, as unhas crescendo cada vez mais porém inquebráveis, o que raios era aquilo não sabia, só sabia coçar e coçar. Aos poucos, abriu-se uma pequena feridinha, crescendo cada vez mais. Do ventre saiu uma flor, que, após um áspero passar de unhas, tombou(para o chão? infinito?). Música continuou cantando e a flor se mexendo.

Mexia-se e mexia-se e a cada rebolar crescia um pouco, as pétalas alargando negras para cair em cabelos, cálice e corola proporcionais, raízes como pequenos pés quentinhos saindo do forno em ritmo, um pé na frente do outro, depois levantava, pulava e movia seus cabelos conforme o acorde da mãe. Era a filha Dança nascendo, fruto das vontades das mães, ambas fusionadas em uma que, no futuro, seria a rainha do universo.

Epílogo

Música viveu o resto e soma de sua passagem amando a filha bela, a compassada, vendo em cada passo o seu ritmo e em cada feição uma palavra da Poesia. Dança, filha órfã mas muito bem amada, cresceu aos moldes da mãe, apesar do estilo próprio. Poesia morreu bela e jovem. Seu maior pesar foi, pelo resto da eternidade, só ter sido realmente desvendada pela Música. Nunca deu frutos ao futuro, e nem nunca dará, tendo o destino a sentenciado para ser desconhecida.

Só fez influência à amada e à filha, que, infelizmente, nunca conheceu.

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