Quem lê essa Polaroide já deve ter percebido que a figura do médico me traz certa fascinação. Longe de ter uma vontade reprimida e frustrada de ser doutor, acho interessante analisar a forma como encaramos a autoridade de um sujeito de jaleco branco com quem não temos intimidade. Isso sem contar a maneira como médicos encaram a si mesmos, alimentando uma espécie de egocentrismo narcísico dada a posição e status exercidos.
Hoje, vivemos em uma sociedade medicinal. O médico é um ser cuja opinião nos é relevante como se exercesse uma autoridade paternal em nosso inconsciente. Respeitamos-lhe porque conhece do corpo humano melhor do que qualquer um - e nosso corpo é o que mais importa em nosso cotidiano, visto que é a personificação mais real e tátil do significado vida.
Doutores são xamãs, remédios são preces atendidas instantaneamente. O tratamento medicinal é a nova religião contemporânea, ocupando um dos lugares deixados pela falência de instituições que até pouco tempo detinham autoridade.
Tenho um conhecido que adquiriu bastante peso nos últimos meses, devido à ansiedade emocional aliada à difícil perspectiva de futuro. Qual a solução encontrada por ele? "Vou ir no médico e tomar uns remédios pra acalmar os nervos e ver se ele receita algo pra eu emagrecer".
Após anos em que tínhamos um tempo razoável para exercer nossas ações, vivemos em uma época em que pessoas só adquirem importância ao produzirem riquezas em um aspecto quantitativo - não qualitativo, implicando em fazer muita coisa em pouco tempo. Quando há uma adversidade, em vez de procurar uma maneira de lidar com ela, tratamos de seus efeitos. O foco é na consequência, não na causa, já que tratar a circunstância primária exige tempo e esforço de que não dispomos.
Pedir um remédio para a ansiedade em vez de procurar entender porque ela se instalou sobre a mente é um exemplo sintomático de nossa sociedade. Os médicos inserem-se aqui, fruto de relações exploratórias em que o tempo adquire significado maior do que a própria existência que lhe dá origem. Precisamos produzir, então não temos tempo para parar e pensar.
Por que não nos assustamos com o fato de que todos conhecemos ao menos uma pessoa que toma ansiolítico? Será que é saudável termos aceitado este hábito em nossa sociedade? A naturalização de uma prática que, resumidamente, é muleta para postar-se em pé, demonstra no mínimo que aprovamos uma maneira de encarar o mundo cada vez mais em voga.
É mais prático tomar uma pílula e continuar em um cotidiano maluco e estressante do que sentar e reavaliar escolhas que correm o risco de acarretar sofrimento e arrependimento - sentimentos nobres, do ponto de vista de quem vê de fora, mas reprimidos quando enfrentados. Aliás, a repressão de respostas naturais formuladas como defesa pela nossa consciência também nos diz algo: após longo período em que não damos atenção a sentimentos humanos, estamos nos dirigindo cada vez mais a uma sociedade sentimentalmente robótica. Como se estivéssemos em 1984, de George Orwell: faltando apenas o café de má qualidade para tornarmo-nos bonecos em uma sociedade que não se importa com o outro.
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