domingo, 28 de abril de 2013

de cima eu vejo chapéus, mas embaixo têm homens

eu poderia fazer de todas as ações uma recíproca. assim, iria me olhar no espelho apenas para saber se meu reflexo segue lá, se minha barba hoje está mais loira ou mais morena. calçaria meus sapatos na expectativa de confirmar a presença dos meus pés. visto que pretensiosamente habituado, colocaria água para ferver à espera de molhar-me. e como se fosse casual, pegaria a xícara de café fora da asa - apenas para sentir alguns segundos de calor. falaria com minha colega de quarto para saber se ainda sei francês, e depois entraria na internet para ver se depois disso não esqueci o português. ao chegar na universidade, a professora reconheceria o meu nome, e assim eu saberia que ao menos uma vez eu existi para ela. 

nenhum daqueles colegas ao meu redor me reconhece, porque eu não fiz questão de nascer para eles. talvez daqui a uma semana ainda lembrem de um jovem moreno de olhos claros que sempre se sentava sozinho na aula de museus. não teriam certeza, mas talvez a professora houvesse dito que ele era brasileiro. dessa forma, eu não seria mais do que um boato ou um projeto de pessoa. ao passo de um mês, seria confundido com qualquer outro jovem moreno de olhos claros que se sentasse no fundo da sala. qualquer um que fosse quieto, não levantasse a mão para respostas, chegasse sempre atrasado e fosse um dos primeiros a sair. desses há muitos por aí, sobre os quais fazemos mil hipóteses. de onde será que ele vem? seria burro e incapaz de responder a qualquer questão? onde comprou aquela calça bege? por que não dobra a barra duas vezes, para que apareça o pequeno espaço entre o pé e o tornozelo? e mais toda a sorte de questões mesquinhas, incompreensíveis e, portanto, naturalmente interessantes.

eu poderia fazer de todas as ações uma recíproca. entretanto, o peso de cada uma me lembraria da minha leviandade e insegurança. tornaria-me transparente e tautológico, e também monocromático. como uma montanha à luz do entardecer, onde o que vemos não passa de obscuros e gigantescos montes de terra. aqueles grandes pedregulhos realmente estavam ali durante o dia? ou eram apenas cercas de madeira hollywoodianas? em frente a estes morros escondidos pela luz do sol que vai embora, vejo-me novamente uma criança na sacada a encarar um bolo de chocolate que minha mãe acaba de retirar do forno. a gente é pequeno e olha de baixo, querendo comer, mas sem saber se aquilo foi feito para nós. talvez por isso que fascine.