sábado, 30 de julho de 2011

Membro-fantasma

Hoje eu quis muito fumar um cigarro. Certos movimentos quase são atrelados a certas ações. Por exemplo: sentar perto da janela para olhar a chuva e pensar em quantas pessoas podem estar fazendo o mesmo. E como é a chuva em outro lugar. Quantas pessoas chorando, misturando lágrimas da terra com lágrimas do céu. Quantos céus são precisos para atender a todos os pedidos? Quantos pedidos pedindo mais chuva.

Tudo isso parece exigir algo para aproximar e afastar da boca. Daí se pega uma caneta e morde. Mas faz falta uma fumacinha para expirar e se misturar àquele sentimento que a gente tem ao olhar as gotas caírem. Existe alguma palavra para essa sensação?

(A língua portuguesa nos falha quando não nos apresenta uma palavra para certos sentimentos. Existe um substantivo para dizer quando se quer morrer? Ou quando se quer matar, além de "vontade de".)

Faz falta o cigarro. Como se eu fumasse há anos e precisasse da muleta. Só que eu não gosto do cheiro, tampouco do gosto. Além disso, faz mal. Tipo maionese, que dá câncer. Ou catchup. Ketchup (Julgar alguém pela maneira como fala; se diz "bandeidi" ou "bandaidi"). Mas cigarro eu sei que vicia e ainda dá um puta gasto. Então não tem por que começar a fumar, ainda que dê vontade.

E café. Você sente o cheiro e dá uma vontade louca de tomar um. O ruim é que não gosto. Acho um pouco triste o fato de o cheiro ser melhor do que o sabor. Parece que estou sendo enganado.

Café nos passa a perna. Parece ser melhor do que é, mas não. Como aquelas pessoas que são muito bonitas, porém não nos agradam. De longe nos chamando a atenção, mas quando a gente chega mais perto e prova, sai decepcionado.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Sobre cadeias

Estação Carandiru, Drauzio Varella

É universal o ódio aos estupradores. Os ladrões aceitam tudo: agressão física, estelionato, exploração do lenocídio e assassinatos torpes - menos o estupro. A ojeriza a este crime é compartilhada pelos próprios funcionários e pela sociedade em geral. 

(...) Gilson, um representante de vendas de trinta anos, deu carona no fusca para uma estudante de quinze e fez de tudo para levá-la ao motel. Quando se convenceu de que ela não iria, puxou o revólver e não adiantou dizer que era virgem, nada. Com a menina na mira, dirigiu para um lugar ermo e a estuprou. 

(Foi preso)

(...) Acordou com um balde de água suja no rosto. Estava amarrado às grades da cela.

- Me fizeram segurar uma lâmpada na mão e encostaram um fio descascado na grade. A água que jogaram era para conduzir melhor a corrente. Choque de 220. Só desligavam quando a luz acendia na minha mão. Dava um tranco horrível no corpo, a língua enrolava, depois aquele clarão da lâmpada. Achei que ia morrer. Só pedi a Deus que fosse logo.

Quando se cansaram da brincadeira, o vendedor desabou semiconsciente, cheio de sangue e com o rosto deformado. Nessa hora, urinaram em cima dele.

Aí o Barriga, um ladrão que tinha sido preso entalado na claraboia do forro de uma casa na qual esperava encontrar uma fortuna em joias contrabandeadas, abaixou-lhe as calças:

- Agora vai sentir que nem a mina que você estuprou!

(...) Num ambiente em que o assassino de um pai de família indefeso merece respeito, pode parecer desproporcional a aversão ao estuprador. Seu Lupércio, que se orgulha de nunca ter roubado, embora tenha passado a maior parte da vida na cadeira por causa da maconha, e que anos atrás, no Oito, viu um branquelo, estuprador de meninas japonesas, ser empalado com cabo de vassoura introduzido à marreta, explica a filosofia:

- Não pode deixar essa gente frequentar o ambiente, porque aqui nós recebemos nossa esposa, a mãe e as irmãs. Quem cometeu uma pilantragem dessa, pode recair e faltar com o devido respeito. Eu sou contra a pena de morte no nosso país, mas sou a favor no caso de estupro.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

500

eu queria dizer obrigado a todos...

Uma baboseira inadmissível!
subiu as escadas correndo, criatura linda,
cheia de colares e presilhas no cabelo,
era uma garota linda, linda
daquelas de cabelo curto,
mas não de maneira andrógena,
ela tinha ainda aquela feminilidade atraente
porém toda uma desenvoltura reverberando confiança,
não eram todos os homens que a reparavam
apenas aqueles dotados de um quê a mais
aquela luzinha distribuída vez em quando
que até o mais escuro dos olhares repousa a atenção
todo um chacoalhar lindo, lindo,
eu reparei nela desde a primeira vez em que a vi correndo
uma garota de cabelos curtos subindo as escadas
correndo para buscar alguma coisa,
acho que é busca, porque corre,
e por que alguém correria senão para buscar algo?
vontade de correr atrás dela,
dizer meu amor, não precisa ter pressa
eu te espero todas as terças, após o café da manhã,
um pouco antes de ir ao trabalho
e na labuta penso nos teus cachos,
e em como deves cortar a manteiga com a faca
será que fomos feitos um pro outro?
como me encantava sua aura
será que ela ri quando goza?
e goza das suas bobagens
e age contra a vontade
de que maneira posso iniciar um papo curto, mas que se torne longo,
e de repente falemos sobre aquelas coisas sem nexo de filmes intelectuais,
ela tem cachos, perfeita para ser a mocinha principal
meu cabelo é liso,
mas à revelia disso,
meu coração é enorme
e tenho pernas compridas para dar um passo longo,
caso caia da escada, bonequinha de luxo
câmera lenta em direção aos meus braços.

diz que me quer, diz que corre para mim...

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Autorremissão

Hoje li nossos e-mails. Queria dizer, olha. Dói tanto. Desejaria que a soma das palavras resultasse em uma maior quantidade de amor que você tem por mim. Mas amor a gente nem conta, então não sei. Eu hoje cheguei à conclusão de que palavras não valem nada. Você me mandava textos cheios de afeto e cariño. Tinha especial predileção por aqueles com histórias de nós ao redor do mundo. Eram promessas, entretanto eu sabia serem apenas histórias, visto que tudo que é prometido não passa de amor ao que não existe.

Queria dizer, olha. Dói tanto. Descobri que palavras não valem nada. Você as usou e os sentidos aguaram. Você me usou e hoje leio seus e-mails em que você dizia que me adorava no reflexo da janela de manhãzinha, de preferência às nove. Tenho vontade de dizer a todos os seus íntimos que você não entende de língua portuguesa. Compreende o significado de janela? A palavra reflexo. Letras são bobas e queridas quando fazemos sons de bebê, porém ao se unirem em busca de um sentido correm o risco de serem manipuladas. Elas se vendem para que consigamos entendê-las. Você não foi afável com quem lhe ajudou.

Eu poderia ser teatral e dizer que só defendo as palavras a fim de esconder uma profunda ferida que chama a atenção para quem olha em direção ao meu peito, mas só consegue ver o outro lado, como se eu fosse um tronco de árvore onde habitasse um casal de passarinhos fugindo de um inverno rigoroso. Dentro de mim emanasse um pouco de calor, usado para aquecer um pingo de vida que voa por aí. Queria dizer, olha. Dói tanto. Inverna lá fora, mas ainda mais aqui dentro. A soma das letras não me diz do seu amor, contudo minhas palavras podem lhe dizer um pouco do meu gelo.


Não o afeto, mas o inominável,

Fernando.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Dores de jardim

 Dores de jardim é meu 499º poema. Não escrevo há um bom tempo por medo de chegar ao número seguinte. Acho que é o temor de escrever algo ruim no número dos gêmeos idênticos. Acho que é bobagem...

Este é um poema sobre perda.
Não é muito terno, apesar do meu desejo.
Ele fala sobre esta dor que fura o meio do peito
Como faca
Que rasga a certeza de que o mundo é seguro
E nenhum dos nossos amigos vai sofrer nas mãos da Morte,
Cuja carruagem arrasta amargas faixas pretas pelo chão.
Nelas há um líquido cinza corrosivo
O odor impregna todo o ambiente por que passa
E resta aquela terrível aura pesada
Insistindo em pesar nos corações...
A nós, reles mortais, resta apenas abraçar-nos uns aos outros
Na esperança de não tombar tristemente
No chão da poça horripilante.

domingo, 17 de julho de 2011

Dormi

Eu fiquei o final de semana inteiro relendo Harry Potter 7 para assistir ao filme na semana que vem. Algo como ler das 9h à meia-noite, com algumas pausas, óbvio. A questão é que passei quase 32 horas sem focar a atenção em alguma coisa que se relacionasse a mim. Foi um final de semana que não vivi a vida de Marcel, visto que evitei saídas e declinei convites para ficar em casa e terminar o livro; foram dois dias em que tive mais acúmulo de recordações de um personagem fictício do que de mim mesmo. Talvez não efetivamente, pois um ser humano pensa em muitas coisas durante o dia e responde a milhares de estímulos. Entretanto, ao pensar no assunto, as lembranças mais marcantes que tenho são a viagem de Harry, Rony e Hermione pela Grã-Bretanha para achar Horcruxes e a batalha em Hogwarts.

A perspectiva de me anular em prol de uma ficção me assusta. Lembro agora que um amigo dormiu 22h e disse ser engraçado quando o dia não existe, porque o tempo fica mais engraçado ainda no momento em que o dia não foi uma experiência vivida.

Eu queria que as coisas fossem mais fáceis. Que nos exigíssemos menos, também.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Abduzi

 Foi após saber de um suicídio...

Eu tive daqueles sonhos que é melhor não esquecer
Por isso o escrevo
Havia uma pessoa na beira da janela
Que queria pular, mas então pensava
Se a vida precisa ser tão madura com a gente
Que às vezes ainda está dentro do caule
E procura desesperadamente alguma figura de luz
A oferecer a mão e a esperança
De que um dia tudo pode acabar.

Então essa pessoa pulou
Lá do décimo primeiro andar
Rapidamente pediram que eu reconhecesse o corpo
Eu era um transeunte qualquer
Talvez figurativo, em meu próprio sonho
Vi que o corpo fora a pessoa mais importante de minha vida
E que minha vida estava deitada em uma poça de sangue
E que minha vida era nada mais do que uma poça de sangue
E que toda a minha vida rodou até chegar em sangue
Deveras um salto ironia
Num libertar que desinibiu as toneladas
Com um rosto todo desfigurado, ainda transparecendo um semblante de cariño
Mas apesar de tudo afastei-me em dois passos
E vomitei compulsivamente por angústia do mundo
A neve, o cavalinho e a fome
Verti de mim as compressas de mim mesmo
Um peso caiu do prédio
Outro jorrou da carne ao chão

Subi aos céus e resplandeci.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

É de uma tristeza averiguar que a soma das horas quase sempre provoca aquela sensação de desagrado. Talvez seja aquilo do ser humano de que sempre está insatisfeito, nunca está contente, sempre mais, mais, mais, algo que signifique nossa existência a princípio amarga. Inventamos o tempo para nos dar o prazer de olhar para trás a fim de ver o que passou: e para olhar a frente e ficar sem chão.

"Barcos podem flutuar sobre as águas.
Pessoas são embarcações sujeitas a afundamentos.

Pessoas são barcos que se confundem com as águas
Quando choram.
Mas pessoas gostam de viver no chão."

sábado, 9 de julho de 2011

Mentira

Nenhuma experiência é absorvida da mesma maneira no mundo, visto que um fenômeno é sempre apreendido por meio dos sentidos. Neste processo de captura, a mediação feita por nossa subjetividade sempre interfere no processo final de entendimento de um fato - isso se crermos em que todo o conhecimento só é válido se vivido factualmente, por meio do tato, olfato, paladar, audição ou visão. Poderíamos dizer que há processos extracorpóreos de vivência, mas passaríamos enfim a acrescentar a telepatia ou a projeção astral como métodos de adquirir experiência. Alias, por que não? Esperamos o surgimento de alguém que prove isso cientificamente...

De qualquer maneira, se a cada fenômeno é atribuído um sentido, e existem bilhões de pessoas, cada uma com uma história de vida formulando uma subjetividade, então há bilhões de sentidos espalhados pelo planeta. O que é difícil de entender é que a verdade é um consenso entre a população, visto que a realidade não pode ser inteiramente conhecida. Só que como formular um consenso se cada um absorve um fenômeno de cada maneira e, portanto, constrói a verdade de um jeitinho diferente? O mundo é uma bagunça? Fico um pouco perdido ao pensar que a realidade só seria um fim alcançado no momento em que todo o conhecimento do mundo estivesse evidente a todos, restando, assim, todas as noções de realidade disponíveis para se formular um conceito do que não é irreal. A verdade que temos das coisas nunca engloba todos os pontos de vista possíveis, então é sempre tendenciosa para algum lado. Ainda por falta de informação, corre o risco de ser uma mentira.

E se não pensarmos em tudo isso e nos contentarmos com a possibilidade de mentirmos o tempo todo? Pior ainda: conformar-se e gostar do que temos, achando que já é válido. Tenho imensa admiração por pessoas que procuram mudar o mundo porque, de alguma maneira, me dizem que no fundo sabem que o que temos é uma verdade deveras falsa. O presente nunca vai ser realidade, porque nascem várias pessoas trazendo consigo diversas apreensões do que é real. O real pertence ao futuro.

Todos vivemos em uma ficção.
Escrevo porque penso que isso me ajuda a fugir da mentira.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Eternos jovens

Como se o mundo fosse um lago calmo em um inverno gelado... e os anos transcorressem de maneira sem surpresas. Mulheres amamentavam crianças e homens impunham-se  medo. A única preocupação das mães eram as tormentas nas épocas marcadas há gerações conhecidas. Avós e avôs ensinavam, desde que as crianças era pequenas que, quando os peixes pulavam para fora da água, a tempestade vinha vento a vento.

Nestas épocas já escolhidas a dedo desde as eras mais esquecidas, as tribos organizavam-se em um ritual de preparação para a vinda da morte. Ainda nos primeiros passos da humanidade, instituiu-se que os mais velhos seriam sacrificados, a fim de mostrar aos deuses que a população cedia seus mais vastos conhecimentos em prol de uma vida pacata e segura. O hábito se assentou. Dado este costume deveras bizarro, todas as tribos do planeta ajuntaram sob o nome de "Os Eternos Jovens".

Os Eternos Jovens elegiam seu chefe pelo número de filhos. Quanto mais descendentes, melhor sua posição no grupo. O ritual de passagem para a vida adulta dos garotos ocorria na primeira lua cheia do décimo quarto inverno. Consistia basicamente em seduzir o maior número de mulheres e com elas procriar. Quem se deitasse com mais de sete jovens, estava apto a iniciar-se na longa escada em que se consistia o sistema de hierarquização. À época do rito, andava-se por vastos territórios e comumente se viam orgias em massa e bacanais do delírio. Tudo para assegurar a vida da espécie.

Os mais jovens dos Eternos Jovens questionavam-se em relação à tradição de sacrificar os mais velhos para os deuses. Alguns, porém muito poucos, sentiam o degringolar da humanidade passo a passo, tormenta a tormenta, como se em cada raio que insurgisse ao chão, um pensamento fosse excluído do inconsciente coletivo. Entretanto, por respeito aos idosos que morriam, todos se calavam, até mesmo por receio de eles mesmos serem sacrificados por deter ideias avançadas demais que os deuses quisessem cobrar.

De fato, os poucos habitantes que assim pensavam acertaram. Com o passar dos anos, a população dos Eternos Jovens passo a passo diminuiu, até chegar ao ponto de não haver mais idosos para serem sacrificados. Pela lógica, adultos detinham maior conhecimento do que os mais jovens, pois apesar de estes terem mais revolução, aqueles tinham mais seriedade. Nesta fase da tribo, corpos foram encontrados de mãos dadas nas colinas dos morros. Os filósofos explicavam: pais que se doaram aos deuses, sem comunicar à tribo, na esperança de assegurar a vida dos filhos.

Tanto os deuses exigiram que também os mais velhos dos Eternos Jovens não passavam de garotos e garotas cujo único objetivo era brincar. Entretanto, pela necessidade de se fazer viver, amadureciam de maneira que caçavam e cosiam vestes para guerreiros. Ainda assim, por serem inexperientes e fracos, capturavam apenas animais de pequeno porte, como coelhos e aves. Nesta etapa, a maldição da tribo iniciou-se.

Na falta de avôs e avós que lhe explicassem do sentido dos peixes pulando para fora d'água, as crianças passaram a capturá-los como forma de alimento garantido. Muito mais fáceis de pegar, visto que apenas era preciso sentar em pedras nos lagos e riachos, os jovens assustaram os peixes que há eras ajudavam a humanidade. Com isso, os animais aquáticos, temendo o próprio fim da espécie, decidiram nunca mais sair das águas.

Os Eternos Jovens, detendo apenas a lembrança de que precisavam se sacrificar, mataram-se todos na primeira geada que o inverno trouxe. Este foi o fim da humanidade.