sábado, 30 de outubro de 2010

O Brasil de todos



O Brasil é formado por seis letras e 191 milhões de pessoas. Agora que você leu isso já são mais. Umas morreram, outras nasceram, no entanto a maioria ainda vive. São novas pessoas, porém o Brasil ainda tem seis letras. Mudam as pessoas e as pessoas mudam, mas a nossa ideia de nacionalidade se mantém, nos dando a sensação de que estamos unidos e de que algo que não vemos nos conecta de maneira inexorável. Nacionalidade é como Deus, no que diz respeito a ser um motivo que nos une. A diferença é que todos concordam que nacionalidade existe. Nacionalidade é um conceito bem abstrato, mas talvez nação seja mais. Stuart Hall fala que a Nação é um "sistema de representação cultural", e, a partir dela, todos nos uniríamos. "Nação é uma comunidade simbólica, e é isso que explica seu 'poder para pegar e gerar um sentimento de identidade e lealdade' (Schwarz)". A cultura conecta as pessoas, através de uma cultura nacional, que representaria a identidade de toda a população regida sob um teto político. Esta cultura se construiria (construir-se-ia...) através de  vários fatores, como padrões de alfabetização, uma só língua para se comunicar, formação de instituições culturais etc. 

Todos esses conceitos, na minha opinião, entram em xeque com o nosso mundo, porque num só país existem várias culturas quase opostas, mas que se unem por causas políticas. O Rio Grande do Sul é muito mais parecido com o Uruguai e Argentina (velha comparação esdrúxula) do que com o Nordeste. E mesmo assim, não faz parte desses países. Ciência política, venha a mim, por favor.

Enfim, o horário político começa, aparece a Dilma e o Serra falando do "nosso" Brasil, do "nosso" pré-sal, "nossas" florestas, "nossas" terras e blablablá. Mas será que tudo isso é nosso? Você pode ir até o pré-sal, esperar extraírem o petróleo lá de baixo e pegar uns litros num baldinho? Não pode. Porque isso não é seu. As terras não são suas, nem as florestas, nem o pré-sal. Nada é seu: é da sociedade. E para fazer parte da sociedade, é preciso estar inserido no conceito de nacionalidade, de nação, deter os signos culturais que nos "unem". Quem não detém nada disso, fica fora, porque não faz parte da "nossa" nação, não tem "nossa" cultura, não é digno de ter "nossas" florestas e terras e pré-sal. 

É tudo seu. É tudo de ninguém. 

A sociedade são todos mas ninguém é sociedade. Para estar inserido em uma, é necessário abdicar do benefício próprio na maior parte do tempo. Você nunca vai estar sempre contente em sociedade. Um amigo disse, ironicamente, que o governo Lula não fez nada por ele, mas porque já tinha comida na mesa. Completou que "não pensar só em si é importante, às vezes".

O meu amigo abdicou da felicidade própria para que outro fosse feliz. Viver em sociedade é isso, é constantemente se anular para que o outro não se anule. Às vezes a gente espera que o outro se anule para que fiquemos felizes, porém às vezes não dá certo. Porque o outro não quer se anular nunca, porque é egoísta e se esquece da gente.

Há um tempo, eu pensava que o governo era ruim porque a maioria das pessoas votava pensando mais em si do que nos outros. Mas não penso mais assim. Hoje peguei ônibus com uma senhora com cara de interior. Tinha o rosto bem vermelho de sol, algumas rugas na testa e uns pés-de-galinha ao redor dos olhos. Acho que o tempo já lhe deu a mão. Começou a conversar comigo e disse que votaria no Serra para acabar com a corrupção, pois o Lula tinha um filho dono da Oi e deveria ser corrupto (?), porque o Serra é muito bom na saúde, porque o Bolsa-família só ajuda vagabundo. Falou várias outras coisas, mas nada que me levasse a pensar que votaria no PSDB somente para se beneficiar. Também queria ajudar os outros. Então cheguei à conclusão de que o Brasil é como é - politicamente falando -, não por causa da falta de vontade da população em querer ajudar os outros, mas por causa da falta de vontade dos políticos de fazê-lo como principal objetivo. Penso que todos, repito, todos os políticos querem ajudar a população. Alguns querem mais do que outros. Alguns pensam que com um pequeno esforço já foi creditado seu "dever" para com o eleitorado, e que agora é hora de pegar a sua fatia. Veem que não faz mal pegar uns trocos para se beneficiar, como pagamento por sua generosidade. Talvez sua nacionalidade (e nacionalismo) não sejam tão intrínsecos à personalidade, talvez não vejam que roubar do dinheiro público é roubar de si mesmo.

*

Há algumas semanas, vi que aquelas novas paredes cinza do Arroio Dilúvio, na Avenida Ipiranga, haviam sido pichadas Na hora pensei que era uma droga isso, pois já tinham estragado o negócio limpinho. Contudo comecei a refletir por que umas letras em preto numa parede nova me irritavam. Acho que era meu senso de ordem sendo acionado. Aquilo de estar tudo sempre certo, no seu lugar, com seu objetivo. O objetivo das paredes cinza do Dilúvio são estar lá. Só: estar lá para a sociedade. O fato de a maioria da população não querer paredes pichadas justifica os pichadores não poderem pichar? Por que os pichadores é que devem se anular, se são sempre eles que o fazem?

Pichadores também fazem parte da sociedade, então também vivem no sistema se-anular-e-esperar-que-outro-se-anule. Mas são sempre eles, - os pichadores - que se anulam. Nós (este nós engloba todos que não são pichadores), não. Queremos sempre que nossa voz seja a que fale mais alto. Pichadores são sempre marginalizados: por "depredar" o espaço público e "enfear" paredes. Mas porque não podem ter direito a usar muros da maneira que quiserem vez em quando? Só eles se anulam, só eles ficam calados. Não que eu esteja pregando a pichação: só quero questionar o fato de classificarmos o ato de pichar como algo ruim e errado. No caso de que falei, as paredes cinza do Arroio Dilúvio representam todo o estado de ordem que o Estado prega. Os pichadores que escreveram letras negras são a voz dissonante, que quebraram o ordinário por meio das palavras. Berraram, acabaram com o silêncio imposto pelas paredes antes não tocadas. A gente se irrita porque não gosta das coisas fora do lugar, desta imprevisibilidade que a desordem nos impõe. Os pichadores gritaram nas paredes. Quebraram um silêncio cômodo que se instalou como nuvem em meio ao nosso dia a dia. Mas ninguém quer ouvir esses gritos. Ninguém nunca quer ouvir.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Um pouco de mim

Um pouco de mim:
Defina
De fina certeza
Ou não
Defina:
E grande aspereza
E de sorrir
De fazer bem
Defina:
(Amar sem saber quem)
O pouco que quebra e cai

Metade de mim é o que vem
E a outra é o que vai.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

As mães não querem mais filhos poetas

As mães não querem mais filhos poetas.


A esterilidade dos poemas.
A vida velha que vivemos.
Os homens que nos esperam.
O amor que não chega.
As horas que não dormimos.
A ilusão que não temos.


As mães não querem mais filhos poetas.


Deram o grito 
desesperado
das mães do mundo.



Hilda Hilst, Baladas

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Não te faça louco

Há um certo misticismo nos extremistas, pois eles têm algo pelo que defender.

Além de sua vida, o que você defende?

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Serial Killer

Tinha um homem na rua, e eu imaginei como seria se a velhinha perto dele o matasse. Se eu o matasse.  A morte é fácil. Mas acho que a verdade é que somos todos assassinos em potencial. Por exemplo, hoje 

Você estava na parada de ônibus e com pressa o esperava chegar, a fim de ter tempo para cumprir a sua rotina. O ônibus lentamente parou. Você entrou. Você poderia ter se jogado na frente dele e ser atropelado, você poderia ter esperado passar o próximo ônibus: poderia não ter pegado qualquer linha e ido a pé para casa, mas você não fez nada disso. Você pegou o ônibus na hora em que pegou. E ao fazê-lo, você se fez serial killer. Porque no exato momento em que entrou no ônibus, e a porta se fechou, você assassinou todas as possibilidades de um você em uma outra situação. Morreram Você que Foi a Pé para Casa, Você que Esperou o Próximo Ônibus, Você que Morreu Atropelado e infinitos outros vocês que não há como saber quem são porque já morreram. A porta do ônibus se fechou, e nesse instante, foram fuzilados outros vocês que nunca mais existirão. E, não,

Não adianta dizer que todos os diferentes vocês eram Você. Porque não eram. Se você se atirasse em frente ao ônibus, teria um desenrolar de fatos bem diferente do que se tivesse ido a pé para casa. Poderia ter morrido, poderia ter entrado em coma e causado uma catástrofe familiar, poderia perder as pernas e ter de usar uma cadeira de rodas, poderia até ficar uma semana no hospital e sair de lá andando. Porém mesmo que a última coisa acontecesse, seria um Você diferente, porque teria em si a experiência traumática de ter sido atropelado: experiência que afetaria todas as próximas de uma maneira meio inconsciente.

Hoje você matou várias pessoas, matou várias destinos, você matou também os filhos de um Você num destino louco e bizarro, você afetou sua família e seus amigos de uma maneira irreversível, e não há, não há como voltar, não adianta se arrepender, você matou vários Vocês e várias experiências que nunca acontecerão, e mesmo que aconteçam, não serão a mesma coisa pois as circustâncias também fazem uma experiência, um atropelamento na Farrapos é diferente de um atropelamento na 5th Avenue, você assassinou simultaneamente vários corpos e destinos, e não há como se redimir, isso que é o pior, você matou várias pessoas e não há quem te julgue, não há quem aponte, não há como expiar seu pecado, você matou várias pessoas porém as consciências delas te habitam.

Você é um serial killer: hoje e amanhã você mata. Você mata sem remorso. Só de ler esse texto você já matou várias pessoas, e não adianta correr, porque elas já foram enterradas dentro da sua alma. 

(Mas não chore: 
é o mais forte
quem sempre sobrevive)

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Eu não sei de quem é este trecho, só sei que peguei da Folha de S. Paulo da semana passada:
Se o amor da sua vida não te ligar no dia seguinte, será que continuará sendo o amor da sua vida ou apenas o amor da sua quinzena?

sábado, 9 de outubro de 2010

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Ocasionalmente

Acho que se todos vivêssemos num desenho animado, as coisas seriam mais fáceis. Tudo seria mais colorido, mais digerível, mais palpável. Os vilões e bonzinhos seriam mais nítidos e simplificados e estereotipados. Simplificados porque um vilão sempre é só vilão, sem parte boa - ao menos nos desenhos (exceto em alguns episódios de Tom e Jerry). A gente podia ter a sorte de estar num desenho de super-heróis: quem sabe teríamos super-poderes.

Mas não estamos. Vivemos nessa vida crua crua crua que dói. E arde a pele, e arde o coração. A gente sofre com coisas que sabemos que no futuro não vão mais nos doer, mas mesmo assim nos dói, porque saber que passa não adianta em nada. Parece que o saber da mente é diferente do saber do coração. E nos dói. Vem alguém próximo e tenta nos falar alguma palavra bonita, alguma coisa que reconforte, e, por mais ridículo que pareça, realmento contamos com que essa palavra faça a diferença: a nos provocar uma epifania responsável por mudar nossa visão dos fatos, que será o nosso ponto de virada a nos fazer refletir e achar uma solução para nosso problema. Porém não é assim que funciona pois as coisas só mudam quando a gente quer, na hora em que a gente quer, da maneira que a gente quer: independente de uma palavra na hora certa. Porque a hora certa é a nossa, é a que nós próprios criamos. Às vezes, as pessoas repetem a mesma mensagem diversas vezes, contudo só pela décima vez é que entra no nosso coração. Não porque as nove mensagens anteriores foram inefetivas, mas porque precisamos de nove tempos para nos quedar em paz.

A gente tem um tempo, cada um tem um tempo. Tem o tempo de negar, de lamentar, de chorar, de se fazer culpado, de culpar o outro. Os tempos vão passando: gradativamente um tempo passa e dá lugar a outro maior - o Tempo, - e assim nós mesmos nos substituímos. O Eu velho amadurece e torna-se Eu novo. A alma troca de pele o tempo todo, toda a hora, apesar de a essência ser a mesma. A cobra troca de pele vez em quando, mas, mesmo com peles diferentes, será sempre cobra. É o que ocorre com nossa alma: muda de temps en temps, mas será sempre nossa Alma.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Nhã

Acabou
 
Fui para a cAMA e você não estava lá.
E nem amanhã
Nem nAMAnhã
Nem AMAnhã
Nem AMA nhã...

domingo, 3 de outubro de 2010

Do texto escrito

Talvez a parte mais legal da escrita seja que as palavras têm, por essência, a mesma voz. E por isso um texto não grita nem faz silêncio, ele só é. Ele é e não tem voz, mas é-lhe concedida uma no momento em que o leitor junta as palavras e abstrai o sentido. A escrita, por ela mesma, é muda - dependendo da subjetividade de quem lê para poder existir e ter uma voz para falar.

Não dá para diferenciar um texto escrito por alguém expansivo de alguém tímido. As duas vozes são as mesmas. O que diferencia um texto do outro é a maneira com que o escritor articula os argumentos, as orações, a sonoridade. Se você conhece a pessoa que escreve, aí, sim (e até consegue ouvir a voz dela falando enquanto lê). Mas se desconhece, é impossível. Tem gente tímida que escreve muito bem, porém ao tentarmos transpor a voz da pessoa falando o que escreveu, em voz sonora, não dá. Porque é como tentar unir dois universos diferentes, duas realidades que não se misturam. Você que me lê tem muitas ideias de mim (que sou inteligente, burro, pseudointelectual, culto, arrogante, expansivo - ou quem sabe tímido - etc). A maior parte dessas impressões foram construídas a partir de pura observação. Dos meus gestos, das minhas falas, talvez do meu texto. Só que todas elas podem estar erradas, visto que a observação por si só não comprova nada. É preciso compartilhar experiências junto para que se possa começar a formular uma opinião. Sendo que isso é pouco, porque todos somos complexos demais para que possamos ser resumidos e rotulados a partir de pura observação e poucas cenas convividas. É muito fácil conjugar uma primeira opinião e deixá-la ali, pronta como resposta, porque não é preciso mais questionar-se sobre ela, adentrar no desconhecido mundo do qual o outro faz parte. O texto escrito é traço do escritor, quem sabe índice de um objeto que esteve dentro dele em alguma hora. Mas não passa disso.

O escritor é texto escrito, mas o texto escrito não é escritor. Então, se uma pessoa tímida escreve uma lauda carregada de argumentos, com defesas fortes, é certo dizer que ela realmente possui isso dentro de si, apesar de não conseguir transpor ao vivo: somente no texto. O estilo do texto é parte do estilo da pessoa real e factual. Digo isso porque acredito que haja uma divisão entre o escritor e a pessoa. Ao tomar a forma de escritor, a pessoa deixa aflorar parte dela que não havia espaço até então. Ou ao menos deixa que essa parte tome voz.

Não que não haja textos mais fortes do que outros, textos com mais vida. O que eu quero dizer é que os textos, por eles mesmos, têm capacidade de falar da mesma maneira e atingir o leitor da mesma maneira. A voz do escritor expansivo é a mesma do escritor tímido. Ambos estão em pé de igualdade, e talvez seja por isso que muita gente tímida escreva. Para ter a mesma voz que todo mundo. Para fazer-se ouvir.

(Trecho de um conto do Caio F. Abreu:

E pensarias que o que faz nascer as perguntas não é uma necessidade de conhecimento, mas de ser conhecido. Porque tu não saberias se a moça sentia tua presença. Falando, ouvindo a tua própria voz, solta na praça, terias a certeza de que a moça te ouvia.

No fundo, no fundo, acho que escrever é uma coisa meio sombria, porque a gente nunca pode ter certeza de que alguém nos ouve.)