terça-feira, 31 de dezembro de 2013

nota

O trem vinha de Canoas para Porto Alegre em uma velocidade avassaladora, como se tivesse pressa em entregar uma encomenda muito importante. De certa forma todos nos, os passageiros, éramos o seu pacote. O calor era tamanho que as janelas abertas e a ventania forte não davam conta de causar algo mais do que uma sensação de alivio momentâneo. A paisagem corria para fora, mas também dentro de mim, acionando uma melancolia de final de ano que eu até então não tinha sentido. Um mosquito pousa perto de mim, mas eu tenho preguiça de espantá-lo. O suor corre pelas minhas costas, e eu tenho sede.

A sensação de amortecimento dentro de um trem ou de um ônibus é um forte anestésico. A realidade passa tão rápido que não é possível apreendê-la. Mesmo apos a forte chuva, ainda faz 34 °C. E eu não consigo testemunhar direito o que vivo porque meus olhos não podem se ater adequadamente ao que está lá fora. Tudo é forte e cheio de cores e de sensações, como um vitral de uma catedral enorme que nos faz sentir pequenos. Vontade de tocar tudo com a ponta dos dedos, mas o que eu vejo passa em alta velocidade, como um condensado que me impede de reter na memoria mais do que um borrão. E parece que não sou inteligente o bastante para entender dessa arte. Mas um dia eu vou.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

descanso

o peso dos meus ombros
eu botei em uma balança
e fui andar de balanço
inocente, como uma criança...

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

não me olha com este olhar
não me afoga nesta
piscina tão profunda, ainda
não aprendi a nadar
no mistério do outro.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

a gravidade da anemia

os carboidratos devem ser ingeridos com cuidado
e por isso pode-se escolher uma ou duas batatas cozidas

as proteínas são necessárias para prover força
basta um pequeno pedaço de carne com molho madeira, ao ponto

o ferro vem de folhas escuras, como rúcula, brócolis ou couve-manteiga  
e as fibras provêm das frutas 
(serve uma laranja bem gelada)

mas de onde vem a vitamina da paciência eu já não sei
a molécula da maturidade eu ainda busco
o átomo da esperança não tem fonte, tem é que criar 
tem coisas que a natureza não dá
e o homem tem que sair por aí
buscar numa selva o que lhe falta no corpo
a força que o coração tem carência.

sábado, 12 de outubro de 2013

brincadeira

como um boneco de crochê
que passa o tempo todo
nos braços de um bebê
apresento o sorriso costurado à boca. 

quem me pergunta o porquê
eu não digo nada
desta piada quem rio sou eu
minhas pernas tão loucas pra dançar
e antes de perder todo meu ar, eu me divirto

e me deixo então levar
no pitoresco
brisa quando passa é refresco
tem que aproveitar. 

domingo, 25 de agosto de 2013

irônica interminável insuportável desgastante desqualificadora e também humilhante sugadora de autoestima desestruturadora fora-de-si-e-portanto-de-mim ressaca moral, sentimental e bacanal.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

démodé

Tenho diversas encrencas com as tecnologias digitais. a maior delas é a insistência em reduzir nossa personalidade, dotada das mais diversas dicotomias e questões complexas, a um grupo de fotos de poses forjadas, dispersas frases publicadas com algum objetivo planejado (inconsciente ou não) e projeções baseadas em como gostaríamos que o outro nos enxergasse. tudo assustadoramente natural e, na mesma medida, teatral.

Consequentemente, resumimos nossas vivências, opiniões, tristezas, medos, expectativas, traumas, esperanças e posições em relação ao mundo a uma foto boba com um sorriso amarelo no perfil. embalamos tal expressão em um pacote esteticamente agradável aos olhos e o dispomos nas virtuais prateleiras deste supermercado cujas fronteiras ninguém vê. tornamo-nos palatáveis, digeríveis e simplificados. enquanto isso, o tempo passa em uma logica que ainda não compreendemos totalmente, e tudo se torna primitivo e antiquado em questão de dias. so last week. démodé. 

A pressão de renovar-se constantemente a fim de manter-se atraente perante o olhar do outro exige uma criatividade ilimitada. nossa geração é hype, é cool. todo mundo tem pinta de publicitário e de social media. sabemos o que está in e o comunicamos com fotos no Instagram do nosso ultimo prato no Consultório Culinário. na internet, somos todos engraçados, profundos e detemos uma opinião para tudo. também cozinhamos diversos pratos e somos peculiarmente intelectuais. ao ver uma foto de uma estante de livros em um quarto, me pego imaginando o trabalho da pessoa em ordenar tudo adequadamente, fechar a cortina para alcançar a luz adequada, tirar uma foto daqui, outra dali, com flash, sem flash... quanto tempo ela deve ter perdido para eu deslizar o mouse e visualizar sua imagem durante cinco segundos? quinze, vinte minutos? de alguma forma, as redes sociais nos ligaram a tal ponto que nos tornamos padronizados em nosso comportamento.

Uma vez li o desabafo de uma ex-chefe no Facebook: "não gosto de sushi, nem de frio. posso ficar aqui ainda?". acho que resume muita coisa. de tanto perseguirmos os mesmos objetivos, transformamo-nos em produtos em série. conseguimos a façanha de comercializar nossa própria identidade em uma época cuja moeda é virtual, ditada pela popularidade vapórea do numero de curtidas e compartilhamentos obtidos.

Somos um cigarro que consome a si mesmo. após a primeira tragada, lentamente descansamos em um cinzeiro acessível a todos. aos poucos as pessoas dão tragadas, sem pudor nem rancor. ao fim, o fumo se consome: fica o vazio da incompletude e a duvida: quanto valho por essas bandas? ou, mais enlouquecedor: será que consigo fugir disso?

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

aos 17

encontrei uma poesia que fiz aos 17 e achei bonitinha

Paciente, como quem
Sabe que tudo é ou será pleno,
Ama-me menos, devagar,
Para assim amar-me mais.
acho que prefiro ficção

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

a terapia

você já parou para tirar fotos de uma paisagem bonita? o que ocorre é que, atrás da lente, você sai da posição de experimentador para se transformar em observador, então não vive mais o momento visto que se distanciou para registrá-lo. você não presencia, mas analisa. a memoria cerebral não é exercitada porque no final você terá uma bela fotografia para encarnar o sentimento que supostamente sentia na hora. meses depois, você verá a foto para se lembrar de como era bonita a paisagem, quando de fato não vai recordar, mas supor, visto que estava ocupado demais em gravá-la no filme da câmera. a imagem em papel trará uma alegoria de sentimento, uma lembrança meio-verdade, meio-falsa. mil fotografias e poucas imagens mentais, pouca experiência no presente na esperança de colher os frutos no futuro. seguindo tal raciocínio,

você tem dificuldades em manter-se no presente uma vez em que é movido pela vontade de sempre ser critico e de sempre analisar tudo para não cair no senso-comum. então você se torna ansioso e precisa de cada vez mais tempo e de mais experiências marcantes para apreender a realidade a fim de tocar os seus sentidos mais profundos para viver as mais diversas epifanias que nenhum barato de uma barata lispectoriana poderia proporcionar. você busca

as pessoas mais intensas e os gênios mais complicados e nunca está contente ou satisfeito visto que nada é bom o bastante e assim você entra em um circulo sem fim no qual vive muita coisa mas nada é o bastante.

(eu olho nos seus olhos e vejo que você não tem a idade da sua carteira de identidade.)

seu sorriso é jovem e você esconde bem, mas seus olhos mostram algumas das mais profundas cicatrizes que só pessoas velhas têm. e fala com um pesar e calma que não é reservado aos jovens. você gostaria de ser mais velho?

...

você, quando conhece alguma pessoa diferente, põe-se reservado e se torna uma pessoa das mais atenciosas. porque você analisa tudo porque não consegue entrar em uma situação sem saber se vai dar em algum lugar porque as coisas para você sempre têm que dar em algum lugar, caso contrário é uma perda de tempo. além disso, você precisa ter uma direção, senão não consegue saber se está melhorando ou piorando na vida. então você analisa e se julga e secretamente julga os outros mas julga a si mesmo mais ainda. você entrou nesta sala e sentou na poltrona vermelha e sorriu e perguntou se tudo estava bem comigo antes mesmo de eu perguntar se tudo estava bem com você e em seguida ajeitou-se confortavelmente como se não tivesse nenhum medo de mim, como se estivesse acostumado a transitar por inúmeros ambientes desconhecidos simplesmente porque não houve outra opção na sua vida além de dobrar esquinas vazias nos mais escuros becos da sua consciência. então você coçou o queixo e olhou para o lado e eu percebi

que você quer estar em todos os lugares e em nenhum lugar e que você se fecha em uma concha escura de proteção e insegurança e dificilmente sai de lá. entretanto, quando sai você libera toda a energia retida de uma vez. então você se apaixona perdidamente e caso a pessoa mostre que pode lhe machucar você hesita porque tem medo de não aguentar outras feridas porque está cansado de consertar as coisas e de colocar esparadrapos e pensar que amanhã vai ser melhor porque as coisas sempre ficam melhores no futuro. então você se apega nesse ir deixando, indo, levando. vive como se estivesse sentado dentro de um ônibus, esperando a hora de descer a parada, porém no fundo desejando que a parada não chegue nunca, já que sentar ali é bom e não faz mal a ninguém. olhando através da janela você pensa em como as coisas passam e é tudo muito bonito, mas efêmero. segundo seus olhos, o mundo pode ser despido de profundos sentidos, assim como adornado de significados dos mais estranhos. infelizmente, nosso tempo

acabou, e eu gostaria de vê-lo mais uma vez nesta semana, porque seu olhar está para fora de si e daqui a pouco você vai verter diante de mim, como uma cachoeira brava que segue a lei da gravidade.

domingo, 28 de julho de 2013

ordem dos fatos

como quem costura o botão caído
redijo o texto da minha vida
que seja o que for pra ser
e o que tenha que devir
nascer.

terça-feira, 23 de julho de 2013

domingo, 21 de julho de 2013

Ânsia



Trecho da peça "Ânsia", da dramaturga inglesa Sarah Kane. Lembra Caio Fernando Abreu.

"E quero brincar de esconde-esconde e dar minhas roupas para você e dizer que eu gosto dos seus sapatos e sentar nos degraus enquanto você toma banho e massagear seu pescoço e beijar seus pés e segurar a sua mão e sair para jantar e não me importar quando você comer minha comida e encontrar você no Rudy e falar sobre o dia e digitar suas cartas e carregar suas caixas e rir da sua paranoia e te dar fitas que você não vai ouvir e assistir a belos filmes e assistir a filmes horríveis e reclamar do rádio e tirar fotos de você quando você estiver dormindo e levantar para te levar o café e pãezinhos e geleia e ir ao Florent e tomar café à meia-noite e deixar você roubar meus cigarros e nunca achar os fósforos e contar pra  você sobre o programa de TV que eu vi na noite passada e te levar ao oculista e não rir das suas piadas e querer você de manhã mas deixar você dormir mais um pouco e beijar suas costas e acariciar sua pele e dizer quanto eu amo seu cabelo seus olhos seus lábios seu pescoço seus peitos sua bunda sua

e sentar nos degraus e fumar até seu vizinho chegar em casa e sentar nos degraus e fumar até você chegar em casa e me preocupar quando você estiver atrasada e me surpreender quando você chegar mais cedo e te dar girassóis e ir à sua festa e dançar até  não poder mais e me desculpar quando eu estiver errado e ficar feliz quando você me perdoar e olhar suas fotos e querer ter te conhecido desde que você nasceu e ouvir sua voz no meu ouvido e sentir sua pele na minha pele e ficar assustado quando você estiver zangada e um de seus olhos ficar vermelho e o outro azul e seu cabelo cair para a esquerda e seu rosto parecer oriental e dizer para você que você é linda e te abraçar quando você estiver ansiosa e segurar você quando você se machucar e querer você toda vez que eu te cheirar e te ofender quando te tocar e choramingar quando estiver do seu lado e choramingar quando não estiver e babar nos seus seios e cobrir você de noite e sentir frio quando você tirar meu cobertor e calor quando você não tirar e me derreter quando você sorrir e me acabar por completo quando você gargalhar e não entender por que você acha que estou te rejeitando quando eu não estou te rejeitando e pensar como você pôde achar que alguma vez te rejeitei e pensar em quem você é e te aceitar de qualquer jeito e te falar sobre o garoto da floresta encantada que atravessou o oceano porque te amava e escrever poemas para você e pensar por que você não acredita em mim e sentir tão profundamente que eu não ache palavras pra expressar esse sentimento e querer te comprar um gatinho do qual eu teria ciúmes porque ele teria mais atenção do que eu e deixar você ficar na cama quando você tiver que ir e chorar como um bebê quando você finalmente for e me livrar das pontas e te comprar presentes que você não queira e levá-los de volta e pedir para você casar comigo e ouvir você dizer não mais uma vez mas continuar pedindo porque apesar de você achar que eu não estava falando sério eu sempre falei sério desde a primeira vez que te pedi em casamento e vagar pela cidade achando que ela está vazia sem você e querer o que você quer e achar que estou me perdendo mas saber que estou seguro quando estou com você e te contar o que eu tenho de pior e tentar te dar o que eu tenho de melhor porque você não merece nada menos do que isso e responder suas perguntas quando eu preferir não responder e dizer a você a verdade mesmo quando eu realmente não queira e tentar ser honesto porque eu sei que você prefere assim e achar que está tudo acabado mas agüentar por mais dez minutos antes de você me jogar fora de sua vida e esquecer quem eu sou e tentar ficar  mais próximo de você porque é lindo aprender a te conhecer e vale a pena o esforço e falar mal alemão com você e falar hebraico pior ainda e fazer amor com você às três da manhã e de alguma forma de alguma forma de alguma forma expressar um pouco deste esmagador embaraçoso interminável excessivo insuportável incondicional envolvente enriquecedor-de-coração ampliador-de-mente progressivo infindável amor que eu sinto por você."

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Quando uma francesa partiu meu coração

A verdade é que eu sou bissexual, mas por não exercitar, fiquei gay. Garotas sempre me atraíram. Entretanto, na minha inocência, sempre confundi essa atração por aquela afeição que nutrimos por filhotes de cachorro, velhinhos que dançam ou uma gostosa torta de chocolate. Tudo isso pode parecer loucura, mas foi o que me veio à mente naquela aula de historia dos Estados Unidos, quando minha colega francesa ajeitava os cabelos e deixava o pescoço liso à mostra. Como era bonito! Tão delicado que a brisa invernal do outro lado da janela poderia feri-lo. E eu, sentado na fileira de trás como um pré-adolescente em paixão platônica. Ou pior, um vampiro.

Preciso dizer que ela não era uma francesa típica. Na verdade, sua beleza parecia um mash-up que deu certo. Tinha ascendência indiana, o que explicava sua pele cor de oliva e os olhos negros como um poço-d'água. Da França, puxou a maquiagem pesada, o batom vermelho sempre nos lábios, a boina vermelha que volta-e-meia portava e as roupas que pareciam vir diretamente de uma passarela de moda parisiense. Quando o professor lhe perguntava algo, respondia em inglês com um simpático sotaque francês, sem abrir muito a boca para as vogais e sem pronunciar o "h" como "r". Grosso modo, era fantástica de ser observada.

Mas, afinal, porque ela me chamava tanto a atenção? Seria eu um bissexual enrustido!? Como explicar isso aos meus pais!? Apos todo o trabalho em aceitar o filho gay, agora eu teria que traumatizá-los de novo... Minha mãe iria chorar visto que a partir de agora eu teria mais 50% de chance de ter o coração partido e sofrer por amores infrutíferos, meu pai me xingaria porque eu mudo de ideia o tempo todo, meu irmão pegaria no meu pé pois... é meu irmão, e é isso o que irmãos fazem. Por que isso agora? Como uma simples francesa poderia mexer tanto comigo?

A verdade é que ela não era tão simples. De fato, era bastante charmosa na forma como cruzava as pernas, ajeitava o óculos de aro fino e apoiava o queixo nas mãos enquanto refletia sobre a a colonização a oeste do rio Mississípi. Falava com impetuosidade, mas se portava de uma forma frágil como um pacote de Ruffles. Até hoje, creio que transpirava perfume.

Apos semanas de reflexões introspectivas e de desesperadas tentativas de fazer com que me olhasse, decidi falar com ela. Cheguei atrasado de proposito, avistei uma cadeira vaga ao seu lado e sentei-me. Na primeira oportunidade, investi:

- Oi! Você entendeu por que o México estava enfraquecido antes da guerra com os Estados Unidos? Eu não peguei muito bem...

- Você não leu o texto para esta aula? - ela perguntou, de forma incisiva. Fiz que não com a cabeça e sorri. - Então se você não quer estudar, não atrapalhe os outros quando eles querem! - revidou rispidamente, e em seguida se virou em direção ao professor para me ignorar.

Nunca fui o mesmo depois dessa. Meses depois, conversando com uma amiga, cheguei à conclusão de que não sinto nada por garota qualquer. Acontece que algumas são tão belas que a gente acaba apreciando como uma obra de arte - por serem estéticas, profundas e intocáveis. Na busca do belo, ficamos hipnotizados. Fosse com a francesa ou com filhotes de beagle, o sentimento era o mesmo.

De qualquer forma, hoje já sei: entre uma garota e uma torta, prefiro a torta.

domingo, 14 de julho de 2013

Onírico



Nos meus sonhos mais alucinados, entro no meu apartamento e todos os objetos estão em seus devidos lugares. O telefone está na base, os cartões-postais não caíram da parede durante a noite e os ambos os chinelos estão perto da cama. Ao acordar, não planejo meu dia - mas, no lugar, tomo meu café, como uma fatia de torrada com manteiga e escovo os dentes me atendo apenas àquilo que faço. 

Quando pego o ônibus, desisto do meu livro e dos fones de ouvido para encarar a paisagem através do vidro. O dia traz um uma atmosfera de bem-estar. Nada é absurdo, mas nem por isso menos excitante. Nestes sonhos, não sei aonde estou indo, mas sei que vou ao lugar certo, na hora certa, na devida época. As roupas que visto, desconheço. Seriam um terno, uma gravata e um sapato preto de couro? Uma calça jeans, um sapato de camurça e uma camisa polo? Ou talvez estaria de bermuda e manga curta? Tais duvidas não atravessam meu espirito, o que me tranquiliza. 

*

Ao descer do ônibus, estou nas ruas centrais de uma grande cidade, na região destinada aos pedestres. Vários homens e mulheres ocupados me ultrapassam, enquanto eu os encaro com uma inocência interiorana. Um homem de terno esbarra em mim e pede desculpas, sem contudo esperar para ver se eu as aceito. Em seguida, tento descobrir em qual idioma conversamos, porém não tenho sucesso em me lembrar. Isso me deixa frustrado. Línguas sempre foram sinônimo de libertação, de ferramentas a me permitirem sair do conforto de casa para buscar o mundo por mim mesmo. Se perco a consciência de como falei, tem alguma importância aquilo que falo?

*

Em meio à reflexão, percebo que o homem de terno tomou algo de mim, apesar de não saber o quê. Toda a minha segurança e tranquilidade foram embora, e me pego pensando nas questões mais cruciais da minha vida. Estou no caminho certo? Tenho a inteligência e a garra suficientes para vencer meus obstáculos? Consigo me prostrar por conta própria? Este homem levou o mais sagrado de mim, o que não me deixa outra escolha além de correr atrás dele. 

Sigo-o em meio à multidão e chego a um prédio altíssimo, cuja sombra traz a mais profunda sensação de pequeneza. Esta construção me causa um misto de fascínio e receio, admiração e paúra. Cada andar ergue um tijolo de insegurança em todos os cantos da minha consciência. Antes de entrar, me sinto deslocado... Estou bem arrumado? Fiz a barba, cortei o cabelo? Sei o que falar caso me impeçam de entrar? 

Todas as questões me afligem, e passo a passo me sinto enfraquecer, como um bonsai que perde as folhas devido à falta de água e de sol. O prédio é grande e eu não sei o que fazer, enquanto estes homens de terno e mulheres de tweed desfilam pela entrada da forma mais banal do mundo... Passam seus cartões nas catracas, chamam os elevadores e checam os e-mails em seus iPhones de ultima geração. A mim falta o mais simples - a força de vontade. Sinto-me perdido e sem vias de visualizar qualquer horizonte. O que eu deveria fazer agora?

*

Nas situações difíceis que enfrentei durante a vida, tive que buscar a força necessária para seguir de pé nos mais longínquos oceanos da minha personalidade. Aprendi que, de todos os mares, o mais profundo é a solidão. E nadamos o tempo todo nele, loucos para chegar à superfície. Entretanto, suas águas nos acompanham onde quer que sigamos. Por isso é preciso aprender a nadar. Não há salva-vidas, não há saídas. Só há nossos braços e pés, além de um pouco de otimismo no final do dia, que nos ajuda a pegar no sono. 

*

Alguma parte do meu cérebro produz qualquer tipo de substância que me deixa extasiado, e meu coração se enche de um calor seguro. Em cinco segundos relembro de tudo o que vivi. De uma forma ou de outra, tudo acaba por fazer sentido. O que move as pessoas são as perguntas, não as respostas. O mundo dá medo àqueles que não querem conhecê-lo. 

E assim sigo em direção às catracas, com a certeza de que estou no lugar certo, na hora certa, na devida época. A roleta se move sozinha e nenhum guarda me exige uma identificação. Ao chamar o elevador, não tenho a menor sombra de duvida sobre qual botão apertar. Tudo soa simples e vazio de mistério, como um vento no final de tarde de verão ou o sorriso de um bebê desconhecido

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Para o Marcel castrador

Oi. Hoje eu vou ser um chato e deixarei as formalidades e a boa educação debaixo do meu travesseiro. Se você não gostar, pode escrever uma carta também. O que eu tenho a dizer concerne uma questão muito delicada. Minha primeira pergunta pode parecer boba, mas é sintomática e resume muitos dilemas.

Por que eu não posso comer ketchup no café-da-manhã? Eu gosto do sabor doce e salgado que me faz minhas papilas gustativas despertarem. Você impõe muitas obrigações e isso me deixa exausto. Parece que eu nunca vou ser bom o bastante. Os nuggets devem ser evitados visto que dão câncer, assim como salsichas, celulares no bolso da calça, hot pocket da Sadia e bolacha Passatempo. Também não posso dar uma banda de carro porque vai poluir o meio ambiente. E se um dia eu estiver muito triste e quiser comer um pote de sorvete, é preciso resistir já que comer tudo de uma vez faz mal devido à gordura trans que vai me engordar e matar pois toda a minha família tem pressão alta e diabetes, então eu tenho que me cuidar.

E eu tenho que passar protetor solar no rosto todos os dias porque tenho a pele branca e minha família tem um gene muito amigo de um carinha zoado chamado Câncer de Pele. E tenho que fazer exercícios para manter a forma porque sou o único magro da família e gostaria de continuar sendo para não ter que pirar muito na hora do sorvete e da bolacha Passatempo. E ainda por cima sou gay, e gays tendem a ser neuróticos com o corpo e não gostar de gordinhos porque são "preguiçosos" e "não sabem fechar a boca" (eu sou tudo isso, mas não falo nada porque cedo ou tarde as pessoas descobrem). Alias, gosto de calça de abrigo porque fico confortável, espero que você não me crucifixe por isso.

Eu também queria saber quem te disse que eu devo dançar bem. Eu não sei dançar bem, o que confundia sempre meus amigos estrangeiros ("mas você não saber dançar o saaaaaaamba?????"). Mas eu posso ser feliz assim! Eu nem gosto de ir para boates mesmo! Sou um chato que, quando tem sono, começa a ficar introspectivo e quietinho no meu canto. Ao menos não estrago a noite de ninguém pedindo para ir embora, e você deveria reconhecer isso.

Dias atrás eu queria dormir à tarde e você não me deixou. Você disse que eu não faço nada desde que eu cheguei da França além de ver Glee, ir à terapeuta ou à natação. Você queria que eu lesse um livro ou assistisse a um filme ou fizesse qualquer coisa que exercitasse meu cérebro. No final eu não dormi, não li livro nenhum, não assisti a qualquer filme e nem mesmo vi Glee. Eu fiquei triste porque eu não queria fazer nada e você não me deixou. Sabe de uma coisa? Eu não sou perfeito! Se uma senhora cair no chão e eu rir da cara dela, não vou virar uma pessoa má por causa disso! É impossível fazer tudo certo 24h por dia. Particularmente, não faço a menor ideia de como a humanidade faz para criar filhos sem que eles se joguem de uma ponte ao completar 15 anos.

Sendo assim, eu queria lembrá-lo de que viajar é a melhor coisa do mundo, então gostaria de dizer para você pegar o primeiro avião para o quinto dos infernos e me deixar em paz um minuto, porque eu não sou uma máquina e você é a única pessoa que exige que eu seja sempre melhor do que o dia anterior. Espero que você se divirta ao lado da neura da limpeza do comercia da Veja, a Mônica do Friends e o francês idiota que disse que eu deveria me vestir melhor porque gays têm a obrigação de cuidar da aparência.

As mais sinceras saudações
do Marcel comendo sorvete às 10:48 da manhã.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Para o hipster de Seattle

Caro hipster de Seattle,

você foi o primeiro estrangeiro com quem saí, então vai ficar para sempre na minha memória. Também foi a primeira vez em que eu usei o Grindr. Em meio a diversas fotos de peitos sarados ou peludos, cabeças cortadas e queixos com sorrisos assustadores, você aparecia de corpo inteiro com um óculos hipster e tinha uma descrição que dava a entender que buscava mais do que sexo casual.

Você foi o primeiro a falar comigo, então pensei ser justo ser você a pessoa a escolher o lugar do primeiro encontro. Achei legal uma cafeteria - quer dizer, um louco não escolheria um café no centro da cidade para se apresentar. O lugar era simpático e agradável. E você parecia ser também. Mas logo no início você foi meio babaca. Depois de cinco minutos de conversa, você pediu para que conversássemos em inglês. Eu não entendi o porquê, visto que você se virava muito bem com o francês, contudo você respondeu que preferia falar em inglês por ser mais fácil. Meio preguiçoso agir assim, mas tudo bem. Só que em vez de usar a boa educação e perguntar se eu tinha um bom inglês, foi um pouco idiota da sua parte dizer: "mas você fala inglês, né? Porque todo mundo tem que falar inglês hoje. Ainda mais se você quer ser jornalista. Caso contrário, você não vai ser ninguém na vida".

Naquela hora eu quis responder que eu falava inglês, sim, mas que eu estava na França para falar francês em vez de inglês. E que eu não tinha obrigação nenhuma de passar a falar a sua língua apenas porque você tinha preguiça de falar em outra. Visto que o francês não era natural para nenhum dos dois, muito justo ambos estarem no mesmo campo de batalha. Além disso, foi um tanto arrogante ter imposto o seu idioma como o mais importante do mundo (apesar de ser verdade) e exigir que eu o falasse.

Mas tudo bem, eu ainda não sabia soltar o que eu penso na hora certa.

Infelizmente.

Quando você contou que estudava Direito e Meio Ambiente, eu já criei expectativas de que você seria um cara super politizado e amigo da natureza. Entretanto, só depois eu descobri que você era um ecochato de esquerda. Veja bem, eu também sou de esquerda e tento ser ecológico, tipo não abrir a torneira ao escovar os dentes ou lavar a louça, não comer muita carne ou evitar comprar roupas na Zara porque eles escravizam pessoas. Mas acho um pouco CHATO criticar o outro no primeiro encontro porque ele usava um casaco de couro (que era do meu pai, coitado) porque algum bicho sofreu muito para que eu estivesse fashion. Acho desagradável.

Mas tudo bem, você era um hipster bonitinho, e hipsters são bonitinhos quando não estão sendo insuportáveis.

Quando a garçonete chegou com duas tigelas, eu achei estranho visto que havia pedido um café. Mas estava tudo certo. Você havia me trazido para um lugar que servia cafés em tigelas. A partir de então, o nível de hipsterice da coisa começou a me incomodar.

Como uma tartaruga que estava dormindo e decide botar pouco a pouco a cabeça para fora do casco, você começou a se mostrar arrogante. Do jeito mais chato - isto é, largando informações esparsas sobre a sua inteligência como se eu não percebesse a sua necessidade de se afirmar. Porque havia feito outro intercâmbio quando mais jovem. Porque nos Estados Unidos é difícil encontrar quem fale idiomas estrangeiros, porém você falava espanhol e francês (ONDE eu ainda não sei, porque comigo você queria falar inglês). Que Seattle é a capital hipster da America, mas apesar disso uma cidade genial para se viver ("I'm glad I was born there"). Daí eu comecei a ficar bravo, porque antes a conversa até que estava legal. Para deixar você irritado, falei que a economia da China ia passar a dos Estados Unidos. Depois é que vi meu erro, pois dei a oportunidade de você argumentar durante dez minutos que a America ainda seria a primeira potência mundial por bastante tempo devido a isto e a isso e àquilo. Anyway, a America ainda reinaria, apesar da Tea Party e do aquecimento global.

Eu nunca mais saí contigo e não sei se isso é bom ou ruim. Mas no final do intercâmbio, vi você de madrugada, caindo de bêbado, se agarrando na parede de um prédio da rua boêmia de Grenoble com um australiano hipster bizarro com quem eu fiquei numa festa. Vou revelar uma coisa: ele diz que tem 24 anos, mas na verdade tem 32. E fazia intercâmbio na França junto com jovens de 20 anos porque tinha algum complexo que eu não tive interesse de investigar. Espero que você não fique triste com isso. Se ficar, plante uma árvore para ficar com a consciência limpa, porque acredito que isso dá certo com você.

As mais sinceras saudações
do brasileiro que mata animais para ser fashion. 

quarta-feira, 10 de julho de 2013

A furada

As pessoas sempre dizem que ao guardarmos muitos sentimentos dentro da gente, uma hora a mente cansa e enlouquece. Eu nunca dei muita bola porque era o tipo de coisa que minha vó dizia - até que eu enlouqueci e vi que era verdade mesmo. Após muitas reflexões em janelas de trem, surgiu a ideia de redigir cartas e textos destinados a coisas do mundo que me incomoda(ra)m. Antes eu fazia poesia, mas dai eu vi que não sei escrever poesia mesmo e que é melhor eu guardar tudo no meu bloco de notas até que um dia eu seja agraciado com um talento plathiano (porque o sofrimento eu já tenho).

Durante algum tempo, (se a minha perseverança for mais forte do que dois posts) esta Polaroide vai virar qualquer coisa parecida com Cartas para Julieta. A diferença é que minha Julieta não vai ter uma estatua com peitos em Verona para que eu os aperte à espera de que um dia eu tenha um namorado que tenha a paciência de aguentar as minhas neuras, além de ser enigmático e interessante o bastante a ponto de me desafiar. Prefiro pensar que são cartas ao meu lado B. Ou ao lado C, não sei. Prefiro ser só um neurótico simpático, tipico da nossa geração. Na minha tautologia e ansiedade, consigo ser tão clichê como uma comédia romântica com a Jennifer Aniston  - assim como você. Talvez seja culpa da infância: na demora da internet discada para carregar os jogos do site do Cartoon Network. Ou o programa da Angélica durante as manhãs de segunda à sexta... Bom, a questão é que estou aqui admitindo tal faceta na esperança de que alguém se identifique com a minha voz. E seja feliz nesta simplicidade. Enfim, comecemos os trabalhos.

Caro Jean (ou qualquer outro nome francês comum, como Mathieu ou Pierre),

Quando estávamos no bar e você pediu um drinque de vodka com suco de pomelo, eu fiquei com um pé atrás. Eu gosto de gente diferente (se você tivesse pedido o drink com o suco de laranja, eu iria te achar um chato). Entretanto, vodka com suco de pomelo não é prenuncio de alguém interessante e agradável, mas de alguém que gosta de sofrer. Você bebia aquele copo sem fazer careta, enquanto eu tentava encontrar o trauma de infância que fez você forte o bastante para nem ao menos tremer o olho ao colocar o liquido na boca. Sera que os pais batiam muito nele?, eu pensava. O irmão mais velho ganhava sempre nos jogos de videogame sem deixar o caçulinha reclamar? Por um acaso sofreu bullying no colégio? Enquanto meus dedos esquentavam a minha cuba libre, eu fingia prestar atenção à historia do seu amigo que quebrou a perna fazendo sky. Quando a cuba libre acabou, decidi parar de me afogar em especulações e viver a realidade. 

Quando você me julgou por nunca ter ido à Amazônia, eu tive a paciência de explicar que o Brasil não é a Europa, onde pega-se um trem e em duas horas se esta em outro pais. Mas depois você me perguntou se eu via muitos macacos em Porto Alegre e como era viver em uma cidade sem ônibus, apesar de eu ter dito antes que morava em uma capital do tamanho de Barcelona. Eu sorri e fui educado. Tudo bem, você é francês e não tinha obrigação de saber do Brasil, apesar de estar saindo com um brasileiro. Entretanto, logo em seguida você perguntou onde eu iria trabalhar com a minha graduação em Jornalismo. "Porque é só para trabalhar no Exterior, né? Ou tem jornais no Brasil?". Naquela hora eu tomei dois grandes goles da minha (segunda) cuba para dar uma resposta educada. Quem quer saber do Brasil? Aqui é só Carnaval e floresta mesmo, né.  E gente que faz uma faculdade para nada. 

Você era bonito e educado, então pensei em dar mais uma chance. 

Quando você perguntou se eu queria dar uma passada rápida na Fnac, eu fiquei feliz, já que alguém interessado em livraria certamente deveria ter ao menos UM lado interessante para mim. Separamo-nos rapidamente para que eu pegasse um livro para a faculdade - e então eu te perdi de vista. Tentei encontrar você na seção de literatura francesa, inglesa, ibérica, nórdica, latina, poesia, livros de viagem e até mesmo em filosofia. Para meu azar, você estava no ultimo lugar que eu esperaria: literatura juvenil. Uma estante apenas com livros de capa negra: todos os derivados de Crepúsculo, A Hospedeira e qualquer obra com vampiros e lobisomens sexualmente instáveis. "Isso é para algum primo?", eu ainda perguntei. "Não, é para mim mesmo... Adoro esse tipo de livro!", foi a resposta.

Eu juro que não foi só isso que me fez reportar um compromisso inadiável que me exigia dentro de casa. Eu não sou o chato dos livros, não acho que estrangeiros tenham obrigação de saber sobre o Brasil ou que o mundo tenha que ter o mesmo gosto de bebida que o meu. Mas a mim já basta minha prima de 12 anos falando intensamente sobre livros de semi-humanos com romances de princesa moderna. De mais a mais, você usava óculos escuros em lugares fechados, o que não faz sentido. 

As mais sinceras saudações 
do brasileiro que bizarramente toma banho todos os dias. 

segunda-feira, 1 de julho de 2013

sábado, 29 de junho de 2013

Tocada

(ou "o universo particular")




                                                           "I don’t really know how it came about. I never set out saying my work will be about identity. I am interested in people."
Gillian Wearing


No museu de Brandhorst
Uma jovem de cabelos roxos
Sentou a saia colorida
Em frente à foto de uma artista.
Apos quinze minutos de analista
A menina chorou de mansinho,
Limpou-se então com um lencinho
E à portare via
Dirigiu-se à outra galeria...

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Observações

Hoje fui no Cultura Italiana me informar sobre preços do curso intensivo e quem me atendeu foi um italiano muito educado. Quando digo que era educado, procuro enfatizar tal aspecto dentre tantos outros. Ele usava todas as formas de polidez que o português pode nos proporcionar: me chamava de "senhor", usava o condicional frequentemente ("gostaria", "poderia") e me atendia daquela forma amistosa, quase submissa, de quando uma pessoa quer agradar e fazer tudo da forma correta.

Lembrei-me de mim durante os dois semestres na França, sobretudo nas vezes em que precisava fazer qualquer coisa que fosse um pouco oficial. Resolver burocracias, falar com pessoas mais velhas investidas de alguma autoridade ou mesmo argumentar com o caixa do supermercado porque eu não achava certo eu mesmo ter de ir atras de outros caixas para buscar o meu troco.

Hoje estou no meu país, reimerso na minha cultura e falando uma língua que domino plenamente. Não tenho obrigação de agradar a ninguém para ser visto como igual - pois que minha carteira de identidade me garante tais direitos. Vejo-me tranquilo nas esquinas de uma cidade da qual sempre fiz parte, mas que agora tento refazê-la dentro de mim à medida que redescubro os jogos de luz durante a noite ou ao escutar o burburinho das apressadas pessoas na Rua da Praia.

Deitado na cama antes de dormir, percebo que o inverno para mim tem o som do tremular das capas de plastico que envolvem as roupas molhadas no varal la fora. O vento bate forte e o plastico acompanha, na expectativa de que as roupas lavadas sigam seu objetivo de continuarem limpas. Mais do que o som da minha infância e adolescência, é o som da minha casa, que eu não ouvia ha muito tempo. Ele ressoa no meu intimo, assim como em todos os precipícios da minha consciência.

Conflito

eu queria que de toda esta energia
e ansiedade
jorrasse uma cachoeira que prestasse
para alguma santa cousa.

caso falem que acabou, eu vou ter que negar
no final da fortuna é a bonança
e quem quiser fiança
vai ter que bajular
e se não me chamar para dançar...
ficarei um pouco triste, meu senhor
minha cor de hoje eu já nem sei
perdi o costume de olhar-me no espelho
melhor assim:
nunca tô feio.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Signos

Enquanto ouvia o ultimo cd do Ray Charles
E segurava Houellebecq a tiracolo
Pela janela do trem
Ele via a vista passar

Via a vida passar

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Aprendizado

Foi só quando aprendeu a falar "ambulância"
Que Felícia entendeu a emergência
De sentar-se à mesa
No jantar.

sábado, 18 de maio de 2013

zanzando

me pergunta que horas são
e voilà que não se pensa em nada
de repente sou uma caixa vazia
de onde sai uma ventania
com mania de loucuras, enquanto a mão
direita diz adeus, a esquerda
é colocada no bolso
a libanesa pergunta o que é meu
e eu digo que é tudo seu e vosso e nosso
até porque depois da dez ninguém conta com a verdade
pois que na ultima dose
o mundo, meu deus, é de todas as cores
dos mais diversos odores
como um arco-iris de criança
da primeira série...

quinta-feira, 16 de maio de 2013

terça-feira, 14 de maio de 2013

tudo vira simples

ele disse você é uma pessoa incomum, ele disse
você deve prestar atenção aos impostos, à morfologia e ao acordo do plural,
ele disse que meu sotaque era bonito.

falou para eu caminhar quarenta e cinco minutos por dia
"e você pode chamar isso de jogging"
e se saísse do trabalho às sete
poderia vir comigo.

acho que gosta de mim, diz que faz desenhos
(apesar de escondê-los)
quando está aflito precisa me ver
e quando não quer, diz que não quer mesmo
e cada um sai a cuidar de sua vida.


                              gosto disso essa coisa de quem sabe cada qual com seu cada um
                              essa coisa "eu sou eu, você é você" e cada qual com seu cada qual
                              um mais um é dois, mas um sozinho é bom também
                              gostar de ficar só mas não gosto de solidão

domingo, 5 de maio de 2013

o sebo

Fazia apenas dois dias que eu me mudara para um apartamento de quatro quartos, a ser dividido com três italianas. Decidi dar uma volta de reconhecimento na zona e encontrei um sebo bastante simpático. Abri a porta de vidro e ouvi o barulho de sinos se batendo. Ninguém estava no caixa. O lugar tinha dois andares, cada qual com um pé-direito um pouco baixo. As paredes eram de um amarelo-queimado aconchegante e combinavam com as estantes de madeira que deslizavam pelo corredor, como se a livraria toda me desse um abraço. Ali eu estava sozinho.

Subi para o segundo andar onde se localizavam os livros de ficção. Ainda mais baixo do que o térreo, tive a impressão de que estava em uma casa de anões. Não era preciso me curvar para me locomover, mas também era impossível ficar na ponta dos pés. Naquele lugar, o importante eram os livros, não as pessoas. Caminhei um pouco por aquele ambiente empenhado a me provocar qualquer impressão de nostalgia ou saudade. Não aquela melancolia triste de algo que acabou antes do seu prazo, mas de algo que teve seu fim na hora certa. Se fosse prolongado por um pouco mais, teria dado errado. Porém ali tudo seguiu seu curso certo.

"Ficção em português/espanhol", dizia uma etiqueta. Paulo Coelho, Gabriel Garcia Marquez e José Saramago eram os mais conhecidos. Em um canto escondido, Sputnik, Mi Amor, de Haruki Murakami. Traduzido em espanhol, o livro estava barato e bem conservado. Sentei-me no chão e comecei a ler a primeira pagina. Poucos minutos em seguida, sou interrompido. "Você quer alguma ajuda?", me pergunta o que parecia ser o (talvez único) atendente. Era um francês da minha altura e idade. Poderia muito bem ser meu colega em qualquer aula na faculdade de letras. Talvez estudasse la. "Oi, não precisa, não... Encontrei um livro de um autor que gosto bastante...", respondi. Ele sorriu e disse que estaria por perto se eu precisasse de algo.

Talvez o sebo fosse da família e ele trabalhasse la a pedido dos pais. Ou sera que ele quem quis? Tinha cara de quem gostava de ler. Falou com calma e transmitiu serenidade na voz. Talvez fosse daqueles estudantes de letras que trabalham em livrarias para ter tempo de ler tudo o que desejam e ainda ter tempo de escrever. Tinha cara de quem era assim. Entretanto, quando a gente quer todo mundo tem cara de algo, então no final das contas tudo poderia ser o contrario, não passando de múltiplas projeções oriundas de uma mente desocupada.

Poucos instantes apos me interpelar, ele voltou.

- Você não é francês, não é mesmo?
- Não... Sou brasileiro - disse com um sorriso no rosto.

Quando a gente fala que é do Brasil é bom ter um sorriso no rosto. Da a impressão de sermos simpáticos. No fim deu certo: ele se aproximou e começou a fazer toda a sorte de questões sobre o porquê de eu ter vindo para a França, onde tinha aprendido francês, o que estudava e que tipo de livros eu gostava. Mostrei o que eu segurava nas mãos e ele elogiou minha escolha. "Este japonês é muito bom. Aqui na França as pessoas estão gostando muito dele." No Brasil também, faz alguns anos que uma grande editora decidiu traduzir. Na França também, ele respondeu, depois que o Le Monde fez uma critica, todos foram atras.

E assim seguimos falando. Descobri que ele cursava Francês e Inglês. O sebo era dos tios, e ele trabalhava para ganhar algum dinheiro. Falava bastante para um francês, visto que não me conhecia. E tinha uma característica que aprecio bastante: sorrir enquanto fala. Além disso tinha os dentes bonitos. Tinha um rosto bonito também. Vestia uma calça jeans verde e uma camisa polo branca. No pulso, um relógio cinza marcava o horário. Era um francês agradável aos olhos.

Decidi levar o livro apenas por causa dele. Descemos ao primeiro andar e paguei sete euros. Agradeci e desejei uma boa tarde. "Até outra hora", ele respondeu. Fitou-me com os olhos e continuou sorrindo. Até, eu disse. Sorri também e fui embora, e antes de abrir a porta, ainda olhei para trás. Ele seguia sorrindo.

Nunca mais o vi. De fato havia me esquecido da situação, e apenas me lembrei dias atras, quando passei de bicicleta por acaso em frente ao sebo. Lembrei-me da sensação de paz e contentamento que fiquei logo apos sair daquele lugar. Eu poderia ter pedido seu telefone ou o chamado para um café. Poderíamos ter-nos conhecido melhor e quem sabe nos apaixonarmos, assim como poderíamos ter tomado um café e desagradado um ao outro. Entretanto, certas coisas começam e acabam na hora certa e justa. Daí um tempo depois a gente se lembra e fica com aquela nostalgia amarela, com a certeza de que algumas vivências poderiam ter milhares de outros finais, mas aquele que aconteceu não chega a ser ruim. Pelo contrario, a expectativa de um futuro deixa um gosto bom na boca. Algo de quero mais, como um bom pedaço de torta de uma padaria cara, onde a gente vai só uma vez para dar um pouco de prazer à nossa vida pacata.


domingo, 28 de abril de 2013

de cima eu vejo chapéus, mas embaixo têm homens

eu poderia fazer de todas as ações uma recíproca. assim, iria me olhar no espelho apenas para saber se meu reflexo segue lá, se minha barba hoje está mais loira ou mais morena. calçaria meus sapatos na expectativa de confirmar a presença dos meus pés. visto que pretensiosamente habituado, colocaria água para ferver à espera de molhar-me. e como se fosse casual, pegaria a xícara de café fora da asa - apenas para sentir alguns segundos de calor. falaria com minha colega de quarto para saber se ainda sei francês, e depois entraria na internet para ver se depois disso não esqueci o português. ao chegar na universidade, a professora reconheceria o meu nome, e assim eu saberia que ao menos uma vez eu existi para ela. 

nenhum daqueles colegas ao meu redor me reconhece, porque eu não fiz questão de nascer para eles. talvez daqui a uma semana ainda lembrem de um jovem moreno de olhos claros que sempre se sentava sozinho na aula de museus. não teriam certeza, mas talvez a professora houvesse dito que ele era brasileiro. dessa forma, eu não seria mais do que um boato ou um projeto de pessoa. ao passo de um mês, seria confundido com qualquer outro jovem moreno de olhos claros que se sentasse no fundo da sala. qualquer um que fosse quieto, não levantasse a mão para respostas, chegasse sempre atrasado e fosse um dos primeiros a sair. desses há muitos por aí, sobre os quais fazemos mil hipóteses. de onde será que ele vem? seria burro e incapaz de responder a qualquer questão? onde comprou aquela calça bege? por que não dobra a barra duas vezes, para que apareça o pequeno espaço entre o pé e o tornozelo? e mais toda a sorte de questões mesquinhas, incompreensíveis e, portanto, naturalmente interessantes.

eu poderia fazer de todas as ações uma recíproca. entretanto, o peso de cada uma me lembraria da minha leviandade e insegurança. tornaria-me transparente e tautológico, e também monocromático. como uma montanha à luz do entardecer, onde o que vemos não passa de obscuros e gigantescos montes de terra. aqueles grandes pedregulhos realmente estavam ali durante o dia? ou eram apenas cercas de madeira hollywoodianas? em frente a estes morros escondidos pela luz do sol que vai embora, vejo-me novamente uma criança na sacada a encarar um bolo de chocolate que minha mãe acaba de retirar do forno. a gente é pequeno e olha de baixo, querendo comer, mas sem saber se aquilo foi feito para nós. talvez por isso que fascine.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Praxis

Eu gostaria que a pratica se aliasse à teoria. Que pudessemos efetivamente combater tudo aquilo que soubessemos ser prejudicial.

Tenho certeza de que nuggets faz mal ao meu corpo, porém continuo a ingeri-los uma vez por semana. Também como pizza pronta, cheia de sais mineirais.
Para compensar, não tomo refrigerante. E faço suco natural de laranja. Como se uma ação boa compensasse outra ruim.

Pouco depois de vê-lo, soube que hora ou outra me faria mal. Mas ainda assim continuei. No começo uma vez por semana, depois mais frequentemente. Era arrastado para baixo como um sachê de cha na borda da xicara. A agua quente vem e leva tudo para baixo, sem dó nem pudor. Arrasta tudo consigo.

Hoje tô todo queimado. Mas diz que faz bem, depois cria pele mais dura.

(Eu gostaria que a pratica se aliasse à teoria.)

segunda-feira, 8 de abril de 2013

o começo

Quando acabei o primeiro cigarro da minha vida, passei a ter certeza de que no meu pulmão se instalava o começo de uma doença degenerativa chamada insatisfação.

domingo, 7 de abril de 2013

O primeiro sinal

Ele é ridiculamente interessante. Entende de política, arte, cultura, literatura, psicologia, sociologia, musica, sonhos e realidade. E ainda cozinha. Argumenta sobre diversos temas costurando um assunto ao outro com uma destreza que me excita. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que disserta sobre todos os tópicos que eu poderia imaginar, não fala quase nada sobre si mesmo.

Em um dia cinza como outro qualquer, encontrávamo-nos em um café ao ar livre. Depois de queimar os lábios no primeiro gole, perguntei-lhe por que veio para esta cidade. "Às vezes os filmes do Almodóvar fazem mais sentido do que parecem", respondeu, para em seguida adicionar açucar à sua xicara. Insisti mais uma vez na pergunta, porém ele desconversou enquanto ajeitava a franja loira com uma mão e com a outra retirava uma carteira de fumo do bolso. Creio que aprendeu a conversar sobre tudo para não correr o risco de falar sobre si. Já eu, mal sabia que aos poucos me enfiava em um chapéu grande demais para a cabeça.

A angústia de uma era

Primeiro, culpar uma cidade pelas desilusões amorosas. Mais tarde um povo e sua nação. Em seguida, culpar a sociedade, o sistema, a mercantilização dos relacionamentos, os amores líquidos, a futilidade, a inteligência que cansa o outro, o masoquismo sentimental, a falta de tempo, o excesso de tempo, a indecisão. Ao fim, colocar o peso sobre as neuras de uma época. Eu sou apenas o fruto de uma era. Ao jogar a culpa em um contexto social ou em outra pessoa, paradoxalmente me liberto e me aprisiono. Isto é, deixo de me angustiar por ser protagonista dos meus atos dado que minha consciência esta tranquila apos minha ascenção como vítima. Entretanto, ao mesmo tempo também delego ao outro a responsabilidade pela minha vida. Passo, finalmente, a viver o outro na minha pele.

É uma agradável vida de comercial de margarina. Compro um carro porque pessoas bem-sucedidas têm um carro, visto roupas da Zara porque é uma loja com estilo, escolho um emprego porque serei bem pago. Vou ao restaurante de comida mexicana porque é cool e posto a foto no Instagram para que a imagem endosse uma realidade que não existiria não fosse o olhar do outro. Efetivamente, ela não existiria, visto que é o testemunho do espectador que respalda aquilo que eu sou, já que acordo todos os dias para viver o futuro que a mim foi designado. Sem a testemunha que me assegure de que vivo corretamente, como eu poderia estar tranquilo?

É uma vida com menos dores, visto que há menos questionamentos (para que os fazer se tenho quem me confirme que sigo a trilha certa?). Assim, tudo o que der errado não me inflige tanta dor, pois que antes fere esta capa que me cobre formada pelas expectativas do outro às quais busco atender. Ao mesmo tempo, é também uma vida menos intensa, já que sigo o percurso que alguém espera para mim em vez de inventa-lo eu mesmo. Finalmente, poucas coisas me atingem de forma profunda, pois não é meu verdadeiro e completo eu a marcar presença. No lugar, um casco vazio que é vítima de si mesmo, sombra de algo que poderia ter sido mas nunca chegou a ser. Delegar o protagonismo de nossa vida ao outro é também abdicar da própria busca pela felicidade - que em si é a felicidade.

Muito mais difícil é arcar com o ônus e o bônus de nossas escolhas. Uma vez tomado este caminho, é impossível saber ao certo se agimos corretamente. Contudo, ao mesmo tempo em que isso corroi, também pode acalmar: não existe figura terrena capaz de julgar com uma certeza divina a forma como traçamos nosso caminho. Viver de acordo com a propria vontade e conviver com a eterna incerteza são os sabores e dissabores de quem faz esforços de buscar uma felicidade unica, individual e sincera.

quarta-feira, 27 de março de 2013

A mala do futuro



É sempre fácil amar e ser amado, é sempre fácil viver e dormir, e comer e trabalhar e caminhar. Tais verbos não apresentam problemas na hora de serem conjugados visto que são básicos, não necessitam de explicações e bastam-se por si próprios. Entretanto, quando acrescentamos complementos e expectativas, cada um perde sua simplicidade. Amar e ser amado de verdade, viver bem e trabalhar com prazer, comer comidas boas, caminhar e admirar a paisagem. A sina do ser humano é que esperamos sempre mais do que o básico. 

Quando parti do Brasil, levei nas malas a certeza de começar uma das experiências mais marcantes da minha vida. E, com isso, o peso da expectativa, cujo valor a balança do aeroporto não pôde medir. Durante os primeiros três meses, nadei em um oceano de felicidade. A beleza de um mundo novo e de uma cultura diferente despertaram em mim uma plenitude inacreditável. Todavia, como a provar que até mesmo em um sonho a alegria tem limites, pouco a pouco voltei ao estado normal de viver. É chato dizer isso, mas a gente se acostuma a morar no Exterior. Passo a passo, começamos a reclamar de detalhes absurdos: do trem que passa a cada três minutos mas se atrasou dois, da prefeitura que não retira a neve das calçadas, do vinho de um euro que causou dor de cabeça no dia seguinte. 

A felicidade normatizada desaparece, dando lugar à angústia que toma forma a partir de questionamentos existenciais. Como se andássemos em um conversível a 150km/h e de repente a gasolina acaba logo antes de uma falange, você olha para o precipício e pensa: isto sou eu? Esta queda que é a minha vida, vale a pena eu me atirar? O que há lá embaixo é o que eu desejo? Assim chegamos ao x da questão: queremos amar e ser amados de verdade, viver bem e trabalhar com prazer, comer e degustar, caminhar e admirar o que está ao redor. 

Criar um plano de futuro implica, na maior parte das vezes, plantar a semente da expectativa, que mais cedo ou mais tarde vai dar forma a uma perigosa árvore, que apesar de bela porta uma sombra capaz de acobertar a beleza do presente. O que tenho hoje é bom, mas não é o bastante... E a insatisfação cresce sem limites, porque nunca estamos no lugar que gostariamos.

Isso não quer dizer que não devemos fazer planos – aliás, muito pelo contrário, é bom saber mais ou menos para onde nos dirigimos. No entanto, a vida nunca acontece do jeito que a gente espera. Você pode até estar no lugar em que queria, mas o processo para chegar ai foi exatamente como o imaginado?

Viver é o imprevisto e o perigo, tal qual pegar um ônibus de uma linha desconhecida para ir ao novo dentista. Você tem ideia de que no final abrirá a boca para receber o flúor. Entretanto, o percurso para chegar lá você não domina. É possivel prever a passagem por algumas paradas importantes (vou me formar em tal curso e pretendo trabalhar em tal área). Mas entre passar a roleta e sair pela porta de trás, há um mundo impossivel de ser previsto. Aprender a lidar com esta falta de controle é o que nos angustia, visto que não conhecemos o trajeto, em quais pontos vamos parar e muito menos quem sentará ao nosso lado. Todavia, por bem ou por mal, é sempre mais válido tomar um ônibus desconhecido do que pegar todo o dia a mesmíssima linha, cujo caminho é incapaz de provocar qualquer reação de inesperado.

Nenhum estimulo a relembrar que, mais do que existir, vivemos.  

quarta-feira, 13 de março de 2013

Queria dizer fila e disse pau


Na fila do restaurante universitário, minha madrinha designada pela universidade tentava gentimente engatar uma conversa, sem muito sucesso. Dado meu esforço em expressar-me corretamente, eu pouco prestava atenção às suas palavras. Para puxar assunto, então, resmunguei: C’est chiant d’attendre notre fois à la queue, n’est-ce pas ?  - é chato esperar nossa vez na fila, não é? Ela arregalou os olhos: “Quê??”. Repeti a frase, com voz trêmula, e ela caiu na gargalhada. Em seguida elucidou: da maneira como falei a palavra fila (“queue”), pronunciei “pau”. E a frase transformou-se em uma confissão pornográfica.

Apos essa experiência no inicio do meu intercâmbio, cheguei à conclusão de que se expressar em uma lingua diferente da nossa é como trocar de guardarroupa e tentar dispor as roupas de baixo em gavetas menores. É preciso adaptar o pensamento, acostumado a encaixar-se nas aconchegantes molduras da nossa lingua-mãe, a novas formas e fôrmas (sonoras, no meu caso). E nisso, escorregamos no musgo de um terreno desconhecido.

“Vocês não estudam francês porque é um idioma belo. Vocês estudam francês para transmitir a mesma inteligência que vocês expressam na lingua de vocês”, disse o professor na primeira aula de gramática. E de fato, imagine a frustração: ao longo das mais básicas conversas, você testemunha a redução de todas as suas vivências e conhecimentos adquiridos ao longo dos anos a uma limitada lista de palavras. Você quer dizer que está incomodado com algo, porém não sabe falar “incomodado”. Então fala que "não está confortável".

Pode parecer uma troca banal, cuja consequência é pouca ou nenhuma. Em um quadro mais amplo, talvez. Entretanto, cada palavra é unica por trazer consigo uma carga de subjetividade especifica. Determinados contextos simplesmente pedem que expressemos certas nuances. Como já disse Eliane Brum em uma coluna, "cão" é diferente de "cachorro", visto que o primeiro cheira a sentimento ("o meu cão"), enquanto que "cachorro" pode ser qualquer um que passe pela minha frente. 

Sem o auxilio (ou ajuda?) de um vocabulário rico, nossas ideias correm o risco de enfraquecer. E ideias pobres (ou expressadas de uma maneira pobre quando não o deveriam) acabam por tornar-se vulneráveis a argumentos melhor apresentados – ainda que absurdos. Isto é, discutir com um Malafaia é mais dificil se você não dispõe de uma gama de palavras especificas que salvem você do risco de parecer preconceituoso, irresponsável ou leviano. As sutilezas da subjetividade nunca são fáceis de serem expressadas.

Por via das duvidas, apos o incidente com minha madrinha, procurei no dicionário um sinônimo para fila : file. É mais formal e menos utilizado, porém mais fácil de pronunciar. Entretanto, entre parecer safado ou deslocado, prefiro a segunda opção. 

domingo, 10 de março de 2013

O real pesa mais

Quando o avião desceu o suficiente para eu perceber que adentrava novamente em um não tão estranho mundo onde o sol é avesso a dar as caras, dei-me conta de que chegava ao que, por agora, chamo de casa. Viver na França tem varios pontos postivos, mas com certeza o horizonte cinza não é um deles. Saindo de um calor porto alegre-são paulino onde vestir uma bermuda ja é uma agressão ao corpo, a visão de montes de neve me traz o alivio de fim de viagem. Volto para a minha vida em uma cidade montanhosa, onde sou pouco além de um jovem aventureiro com um bizarro sorriso no rosto e um sotaque latino. 

O bipe autoriza os passageiros a desfivelar o cinto. Liberado o desembarque do meu segundo voo Brasil-França em apenas um semestre, varios pensamentos tomam meu espirito. Enquanto me vem a urgência de vestir o cachecol cinza de quatro voltas no pescoço feito pela minha dinda, a touca azul e branca comprada na Bélgica ao lado de uma amiga que não estaria mais perto nos proximos meses e as luvas pretas que ja tocaram tantos lugares, encontro-me mais uma vez inseguro. Esses apetrechos que me esquentam trazem dezenas de memorias embutidas. Sera que vou sou capaz de construir outras? Como vai ser a segunda parte do meu intercâmbio, agora que mais de 80% dos meus amigos foram embora? E, mais uma vez, o medo de falhar.

Ao longo do ultimo semestre, testemunhei a minha visão de mundo passo a passo ser descontruida. Eu, que sempre fui extremamente idealista e aéreo, tive que enfrentar a dura realidade de que a vida não se preocupa nem um pouco se estamos preparados para suas ações. O tempo passa, independentemente de estarmos de olho no relogio. E o peso do real é grande demais para nos atermos em demasiado ao irreal. Eu, que vivia nesse dialogo entre estar aqui e projetar-me para o ontem e o amanhã, tive que aprender a focar-me no que faço hoje, sob pena de não ser protagonista dos meus proprios atos. 

Anos atras, o que eu mais queria era ser adulto e ganhar autonomia e independência o suficiente para arcar com o peso das minhas escolhas. Hoje, depois de tanto esforço, descubro que ser adulto consiste em perceber que nem sempre na vida a gente faz aquilo que gosta o tempo todo. Entretanto, nem por isso somos infelizes. O mundo não gira ao nosso redor. No Brasil, o carro nem sempre vai parar para você na faixa de pedestre. Na França, o francês quase nunca vai te dar um sorriso espontâneo no supermercado, mesmo que você o dê primeiro. Um dia você vai ouvir uma grosseria por ser estrangeiro, mas isso não precisa arruinar seu dia. Hoje você leva um fora, mas amanhâ é você quem o da - e isso não quer dizer que você ou a outra pessoa não sejam interessantes, a questão é que ninguém agrada a todo mundo. 

Foi cruzando um oceano que realmente passei a compreender esses fatos pequenos. E ver que, por mais que lutemos para fazer alguma diferença, somos iguais a qualquer um, buscando uma felicidade e um cantinho de sucesso. Por mais que eu me irrite com franceses, no final não poderia ser mais agradecido : graças a eles é que eu acabei por descobrir que as verdades da vida não estão na torre Eiffel ou nos mil tipos de queijos. Mas, sim, nos pequenos fatos do dia a dia, idênticos tanto aqui quanto na minha terra ensolarada. O que importa não é o cenario, mas o ator. E a forma como ele da sentido ao que vê.

terça-feira, 5 de março de 2013

passagem

me pego em vias artérias, caminhos principais sem saber para onde ir, olhar, parar ou respirar. me pego sentado em uma sacada de sol, encarando montanhas de gelo, pessoas com sóbrias vestes, bicicletas em caminhos de ferro, velhinhos sem rumo e a neve sem saber aonde vai. 

- alguém sabe qual é meu trem? sei que passa daqui a pouco. 

entrar no vagão certo, sentar e descansar.


reinventar-se, criar novos sentidos, 

(desfazer os velhos) 
cuidar do meu nome e esquecer o sobrenome.

me deram o novelo e agora me cabe
desfazer todos os nós, endireitar os fios
costurar novas ideias
em vestes à prova de lagrimas,
peças que me aqueçam onde eu estiver
onde eu me fizer, onde eu me pegar
sem ar e estarrecido

contando as vezes em que fui
um desespero em uma esquina qualquer...

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

por nove dias odiei o rosto dele, para no décimo perceber que me odiava nos seus atos.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013



"- Please don’t tell anyone this, but I want to be happy.

- Of course you do, everyone does.

- Yeah but I didn’t think that I did. ..I made a promise such a long time ago that I was gonna take in experiences, all of them, so that I could tell other people about them and maybe save them... But it gets so tiring trying to take in all the experiences for everybody, letting anyone say anything to me. And then I came here and I see you... And you got the fruit in the bowl and the fridge with the stuff... And the robe and you’re touching me the way that… I realize I’m not different, you know? I want what everyone wants. I want what they all want. I want all the things. I just wanna be happy."

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Fragmentos, sotaques e revisões


O frio de 8°C derreteu boa parte da neve acumulada em dois dias consecutivos de precipitação. Caminhar pelas ruas já não é mais uma experiência agradável, senão um exercício de cuidado em evitar os montes acinzentados de gelo e sujeira. Em vez de uma paisagem onírica, a cidade desfalece pelo asfalto em direção aos bueiros, como a provar que o tempo tem um prazer em oprimir memórias felizes. Minha amiga, escondida em um grosso casaco marrom de veludo, sente frio e ajeita o cachecol vermelho. Já passa de 1h da manhã. Apesar do sono, ela segue tentando esconder a tristeza que toma seus gestos e falas. O namorado, com uma previsível gentileza, esconde-se em um prédio para mijar a fim de nos deixar sozinhos na despedida. 

Como é isso de se aproximar de uma pessoa a ponto de fazer parte dela e depois ter que se despedir sem a plena certeza de que um dia haverá um reencontro? 

"Erasmus mudou a nossa vida". Sempre gostei do seu leve sotaque alemão. Minha amiga foge de todos os estereótipos que possamos atribuir a pessoas do seu país. Não gosta de cerveja, fala docemente, não é nem um pouco fria e seu maior objetivo é viver de arte e de ensinar alemão e francês. Enquanto esperamos o meu trem em uma cidade cercada por montanhas em todos os lados, fazemos esforços de não dar importância à despedida. "Eu volto para Grenoble na primavera. Senão, a gente pode se ver em Florianópolis". Sorrio, porque sei que quer me confortar. Se o presente é triste, ao menos devemos aceitar o conforto dos planos. 

Ainda não entendo como é possível criar uma ligação tão forte com uma pessoa por intermédio de um idioma que você não domina da mesma forma que o faz com sua língua materna. Creio que, nessas horas, os gestos e expressões faciais adquirem um poder imensurável. E o silêncio na hora certa vale ouro. A mensagem essencial, evidentemente, é sempre repassada. Mas a falta de intimidade com o francês exige que andemos na mesmíssima roda-gigante, na qual lidamos com uma lista de palavras predeterminadas para descrever sentimentos sem dar sempre conta das nuances. E se não sabemos o verbo, explicamos. Se não sabemos explicar, inglesamos. 

"Faz uma semana que não falo ou penso em alemão", disse-me pouco tempo atrás, enquanto esperávamos o sinal vermelho para os carros. Para mim faz uns três, respondo. "Então falemos agora". Por 30 segundos ela conversa em uma língua bruta demais para sua delicadeza. Em seguida, como quem pega pela mão um pássaro que estava voando, falo em português sobre como a neve me deixa simultaneamente feliz e triste. Rimos e atravessamos a rua, embalados pelo conforto de que, em alguma forma, reaproximamo-nos de nossas origens. A falsa certeza de que sabemos de onde viemos. E, com isso, para onde caminhamos. 

Falar em uma língua que não é sua, viver em um pais que não é o seu, acordar todos os dias com uma paisagem que lhe é estranha e estudar assuntos que você nunca tinha refletido sobre acaba por criar um vazio no meio do peito, cuja dor aflige por também ser prazerosa. Somos este vazio que nos toma ou o espaço que nos preenchia antes? Os novos amigos são mais importantes do que nunca, ocupando o lugar da família e dos parceiros de longa data. Ao correr das tardes frias, minha amiga e eu revivemos o passado para conhecer um a história do outro. A intimidade nasce das memórias compartilhadas, em uma ponte que aproxima todos os tempos verbais, um processo que envolve fatos presentes e retrospectivas do que já foi. No nosso caso, ainda a previsão de um futuro - incerto e líquido. 

Bate um vento forte e coloco minhas luvas. Ela abre a bolsa e tira três fotos. Em uma, há uma dedicatória. "Mas lê somente no trem, de acordo?". E em seguida me dá as imagens, apertando minha mão direita assim que toco seus dedos. Começo meu discurso de adeus, sem querer ser cafona, mas já sendo (porque as verdadeiras cartas de amor são sempre ridículas, como dizia Pessoa...). Sou interrompido pelo barulho do trem, que corta todas as expectativas de uma despedida decente, carinhosa e cinematográfica, do jeito que a gente gosta. Nos segundos que nos restam, minha língua fica presa e não tenho sucesso em expressar-me. Scheisse! Désolé, chérie... Ela ri e me diz até breve, também presa pelos muros impostos por esta língua que ora nos liberta, ora nos oprime. Digo obrigado, meu deus, obrigado por tudo, e a abraço. Até breve baixinho e entro no trem. Ela sorri na calçada e abana. 

Irônico o fato de que é minha amiga quem se prepara para partir, mas agora quem vai embora sou eu. A vida, nessa mistura de palavras, encontros e desencontros, nos deixa atordoados e sem tempo de respirar e formular uma frase decente, e de repente você se vê na janela de um trem, lendo a parte de trás de uma foto e revendo os últimos seis meses de vida em milésimos de segundo, e a força do sentimento é tão forte que você chora e volta mais uma vez àquela época de criança desolada, cujo doce foi injustamente tirado antes do fim. A hora certa nunca é a de agora. O relógio da vida está sempre adiantado...

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Assinatura (editada)


Nossa, que canseira!
Pensar me consome muito
Me põe entre a cruz e a espada
E assim deslizo numa escada
Até o fim dos meus degraus...
Erguendo prédios de papel
Neste reino de loucura
Dos sapatos do bom moço
De cachecol no pescoço 
Paletó de gente fina
E perfume bon vivant.

Chegou o Carnaval!

"Vamos colorir os slides?"
Cores? Por que cores? Você quer Carnaval?
Você sente falta do Brasil? Vocês
São muito engraçados!

Somos muitos engraçados
Este reino me elegeu como bobo-da-corte
E agora o chapéu me pesa os ombros
Odeio este tipo de classificação
Se digo"não", é uma pena
Tinha tanto futuro!
E assim revelo todos os furos
Numa roupa bonitinha, mas cafona
E em passos de uma dança clichê
Celebro a matéria das coisas
O sentido que me dão ao nome
E à minha incitada consternação.

Nossa, que fome!
Hora de aceitar todas as rasuras
Me amar com a nova letra
E comprar justas canetas!
Hei de pintar no meu corpo a minha rubrica
Virar a mesa da sorte
E jogar o meu baralho a meu favor...
Vestir a tunica da vida, viver bem
O sofrimento e a nostalgia, 
Para na hora da alegria e da vitoria
Saber criar a historia dos meus atos
Com meu devido nome...

(sem morais nem seus contos
rimas ou inversões)

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Diarios

19/01/2013 No aeroporto de Madrid

Um teto bastante alto, construido para imitar ondas de um mar revolto. Bege, cuja textura lembra uma esteira de praia na qual mulheres despreocupadas se atiram para repousar. E eu sentado, sozinho, com um cansaço nos ombros e uma sede na boca.

Chove em demasiado.

Em Madrid me ponho a associar arquitetura ao mar. Precisaria de um mergulho?

O aeroporto é imponente. Cadeiras de trabalhado plastico, pintado de cinza, somadas às dantescas colunas de metal prateado, produzem um ambiente afogado em uma aura de modernidade. O piso de marmore, limpido. E o ar com cheiro de ferro. Televisões Samsung de 29 polegadas exibem um seriado espanhol de comédia de péssima qualidade. Ao menos a resolução da imagem é quase perfeita. Seu defeito é ser plastica demais. Boa demais.

São 06:47 e não ha almas vivas além de mim e alguns homens a encerar o chão. As unicas vozes vêm da televisão e das minhas palavras no papel. Na tela, uma bela jovem beija um velho gordo em um cemitério. Além do mundo da ficção, quantas pessoas fariam igual? E não se assustariam com a grande barriga como obstaculo... 

Ficcionalizamos na tentativa de ultrapassarmos limites. Penso isso enquanto encaro o horizonte através de uma grande janela de vidro a me separar de aviões e da pista de decolagem. Do mundo exterior. Do frio e da chuva europeia.

Como em uma redoma de vidro, estou a salvo do vento gelado e das preocupações do dia a dia. Nada de atenções ao trabalho, ao sofrimento, à saude, aos problemas dos outros, do mundo, da casa. Nada de aspirações ao futuro, nada de pressões e deveres. Nada de ambições. Precisamente agora, preciso apenas me ater à outra tela mais ao longe, cuja unica função é dar-me outro sentido de vida. Isto é, saber o horario e o portão do meu voo para Lyon. Depois disso, criarei outros sentidos. Retomarei meu nome e voltarei a me apossar de mim mesmo. Mas por enquanto não importa, eu não me pertenço, eu não me controlo. Quem manda é o aeroporto, e eu amorteço.

La fora esta escuro, mas os homens trabalham.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

a língua, entidade dos fluxos de vida e morte
pulso de sobrevivência e assassinato
aproxima e afasta.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

transmuta




(ou "expectativa e projeção")

você promete guardar todos meus segredos. 

não com a literalidade e segurança das palavras,
mas você promete.
e eu juro confiar-te todos os segredos,
me expandir até o coração surtar
saltar da boca e cair
na palma da tua mão.
hei de dançar uns passos de alegria,
cruzar o salão
e no fim dar doses de sangria
a todos os amigos 
sobretudo aos espanhois, os que fizeram a bebida.
de fato ha muito acontecimento no mundo,
mas hoje estou em noite de verão preguiça.
estou de acordo, estou muito desolado:
a cada vez em que paro, pareço andar mais rapido,
e numa marcha sem fim
sigo no caminho contrario
e a mãe diz cuidado, meu filho,
durante a madrugada
os lobos uivam tanto
mas tanto
que dentro da gente
aflora a lua cheia
e cresce o sentimento.