domingo, 29 de abril de 2012

Diários I

pós-modernidade




não sei por onde começar. uma frase, contudo, pode introduzir: quem sou eu?


sei que meu autoconhecimento é bastante profundo. tenho consciência do porquê de ter agido de certa forma e não de outra, falado em vez de calado ou a razão pela qual larguei aquele comentário em uma hora incerta. sei dos motivos inconscientes que movem meus atos, conheço meus maiores defeitos e qualidades e procuro lidar com eles durante meu dia a dia, refreando impulsos egoístas, mesquinhos e pouco sociais para dar vazão àqueles que consideramos saudáveis - como a boa disposição, a infinita motivação que dou aos meus próximos e o afeto que a eles disponho. 


minha rotina consiste neste movimento de vai e vem eterno em que me reprimo e me libero, às vezes falho, erro e novamente me reprimo, enquanto me arrependo por ter feito algo que não deveria. ao mesmo tempo em que faço um comentário desnecessário, imediatamente fico com uma leve raiva de mim e procuro não repetir o mesmo erro. tal esforço se baseia, sobretudo, na expectativa de me tornar alguém melhor - com todos os sentidos que esse advérbio pode abarcar, platônicos ou não.


seria eu, então, aquele homem selvagem preso atrás das grades que erra constantemente para em seguida ser refreado? ou então sou este ser que se esforça diariamente para controlar uma fera e se tornar um anjo? 


a resposta não é tão simples como "sim, você é todos". não é isso, eu me refiro à essência da minha identidade. se não controlasse meus impulsos, eu seria uma pessoa domada por instintos do ego - sexuais, agressivos, territoriais e vampíricos. caso não me controlasse, seria um homem terrível? por tal, o real Marcel é aquele que controla ou o controlado? e não vou listar meus defeitos pois, apesar de me usar como exemplo, falo do ser humano como um todo.


sou verdadeiro apenas sozinho, então? há um filósofo que diz isso, talvez seja Rosseau, não lembro. apenas solitário, quando não há ninguém para me julgar, quando apenas importa a minha opinião - apenas nesse momento sou Marcel? ou sou Marcel enquanto me podo em meio a amigos, desconhecidos e familiares? ou Marcel é aquele que almejo ser após todo este autocontrole? 


necessito de uma resposta pois preciso saber se caminho na correta direção para me tornar uma pessoa melhor. isto é, quem eu devo me tornar? uma pessoa boa com características distintas das que tenho ou apenas controlar meus defeitos e acentuar minhas qualidades? sou o que já sou ou sou esta imensa distância entre aquilo de que não me orgulho e aquilo que um dia pretendo me tornar?


são muitas perguntas, e sem saber respondê-las eu caminho em uma corda-bamba, incerto de para qual lado devo cair ou se há uma rede a amparar minha queda.

projeções

ah se eu fosse dizer
tudo o que gostaria
e desatasse este nó
que me amarra e me enrola
ao redor do corpo, vai fazendo algo
me acaba pouco a pouco, dá
uma coisa na alma, mal se sabe
o que é, só vai deixando, indo, levando, como fazem
as velhas tias com temores de clínicas
que por falta de conhecimento próprio
perdem partes dos pés e das mãos
e mais dia menos dia
encaram a face soturna da morte
para que após muitas análises
os terapeutas alternativos
coloquem a culpa em tumores malignos
nódulos encravados na garganta, palavras
que há muito deveriam ser ditas
mas ficaram presas e cansaram
(um dia quiseram gritar).

porém tu sabes, por bem ou por mal
no fundo sou manso e retirado
ao mesmo tempo em que não calo
tampouco revelo-me ao mundo
apenas escrevo o poema da expectativa
falando o que poderia dizer, fazer
crer ou absolver
e terminar tudo com reticências
uma charada ou máscara qualquer
jogo de interpretações e hermenêutica
uma bela peça de teatro
na qual os atores são tão previsíveis
enquanto um fala de amor
o outro pensa em dor
e um diretor patético controla o jogo de luzes
e de repente a plateia entende tudo
exceto o personagem
apenas eu um lunático qualquer
em uma comédia dramática
na qual a única pessoa a rir
és tu de mim

(fim).

segunda-feira, 23 de abril de 2012

cariño

como um garoto que foge da mãe mas fica sempre ao redor, a verdade é que gostamos de sofrer um pouco, na tentativa de testar limites e buscar motivos. sempre a nos imaginarmos em situações com um quê de dramáticas, como se em uma tempestade o mundo fizesse mais sentido. incrível aquela época de infância em que adoecíamos e a mãe nos dava colo, fazia um chá e abraçava, dizia "tudo vai melhorar" e tudo acabava por fazer sentido.


dessa maneira, hoje nos colocamos em posições sôfregas à espera de um toque alheio a dizer que tudo vai ficar bem, que você é importante o bastante para que eu cesse minhas atividades rotineiras e mesmíssimas, porém que me dão sentido à vida. eu paro com tudo isso para lhe abraçar e dizer que vais ficar melhor e um dia ficarás bem e conquistarás o mundo, enquanto isso abdico de meu tempo e invisto-o em ti para lhe prestar cariño e motivação. tu que moras só neste quarto frio e gelado, eu me inspiro a te levar um chá até a cama e perguntar: "tudo vai bem?"


"queres meu afeto? quais suas expectativas de futuro? queres mais uma coberta? mais um beijo? te quedes assim que eu dou um abraço forte e caloroso"


no fundo sempre a projetar no outro expectativas de que em ocasiões de maior vulnerabilidade seremos cuidados como crianças a receber o devido cuidado merecido. nós um pouco mais importantes no mundo, necessitados de afeto e carinho. em meio a rotinas ordinárias, nós também a cessarmos com as atividades para adentrarmos em uma realidade na qual alguém nos ama e nos quer bem. 


tu nesta cama de cobertas esfarrapadas
que encara uma janela aberta com o vidro fechado
e pensa que o mundo é tão grande e tão arguto
você impotente e diminuto
deixa tocar o piano das causas imperfeitas
cuja melodia da sinceridade soa tantas vezes
mas no final a sinfonia da definição
uma orquestra sem álibis e constatação
apenas tu o maestro oficial
mas capaz de arranjar a galeria
queimar os telhados do teatro
fazer uma folia genial
e convocar todos para uma bela cantoria 
no centrinho da cidade.

Real



eu deveria ter fumado teu cigarro
e na hora certa
eu mesmo calado
mas as pessoas nunca agem como em livros
jamais ousam correr ao aeroporto
impedir o amado de embarcar no voo
e dizer que te amo intensamente
por favor não entre neste avião
pois o destino é frio e longe


do meu coração. vamos sentar nesta cadeira
e avistar toda a gente estranha.
olha como parecem intransigentes!
jamais olham pra cima
onde logo acima vão estar


bem longe do chão. as pessoas não se imaginam voar
e você há de embarcar no avião
e eu vou verter numa lagoa
e me arrastar numa canoa aberta


como uma história tão deserta e factível
eu até já sei deste final
posto que o roteiro ninguém saiba
uma coisa é ficção
a outra eu vivo


(as pessoas nunca agem como em livros.)
"I don't know how more people haven't got mental health
problems
Thinking is one of the most stressful things I've ever come across
And not being able to articulate  what I want to say drives me crazy
I think I should  read more books
And learn some new words
My sister used to read the dictionary
I'm going to start with that
I'd like to travel
I want to see India and the pyramids
A whale and that race 
with all the bicycles in France
I'm not sure about rivers, they scare me
But I love swimming, 
I'm good at it
And when I swim 
I count the laps
And this helps me relax
When I was younger I saw a house burn down
And I walked past it everyday for the next six years
Derelict, black, chalky and dangerous"

domingo, 15 de abril de 2012

Natação



De todos os mares, o mais profundo é a solidão.
Talvez seja por isso
Que as pessoas insistem em dizer
'Adultos precisam nadar por eles mesmos'
E em meio a toda essa sofreguidão
As águas da vida continuam a passar em nossa frente
E numa correnteza feroz e perigosa
Trazem na maré do cotidiano
Uma indiferença que afoga.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Quem diria



Eu, que jamais gostei do cheiro de cigarro
E sempre odiei voltar da noite defumado
Me quedo com um homem que fuma
Até fazer argolas de fumaça
E encher os pratos de cinzas.


Detestável
À exceção do fato
De me fumar de maneira inebriante
Começa pelos pés, com fome
E na cintura já nem sei meu nome...
Um homem que a despeito do odor predileto
Me mostra cores de um universo 
De um anel de verdadeiro brilhante.


Nunca vivi esta sensação
Como se eu fosse um quadro vazio
Ele me vaza em cores
E de repente sou um Van Gogh ou um Dalí
Cheio de sonhos e impressões do real
Ridículo, ridículo
Vejo-o e me perco em azarações
Ah se... poderia me...
E ele me fuma 
E após tudo terminado
Ele acende o cigarro
E como num filme francês eu lhe falo
"De l'amour, je n'avais que l'ombre
Jusqu'à maintenant"
Rimos como crianças num embalo
O que importa é o presente, ele me diz
Engraçado como tudo faz sentido
O mundo não é uma solidão qualquer...

sábado, 7 de abril de 2012

Versus

Isso de conhecer a mim mesmo
É um profundo desgaste mental
Se sei de mim, já sou outro
E este já é esperto e procura enganar
Toda uma legião pronta pra lutar
Sacrifícios meus em prol de um ser
Um Ele que busco encontrar
Mas se me perco já me posto no chão a chorar
E logo vem o soldado e diz pra recompor-me
'Onde já se viu uma batalha ganha
Com um homem deitado no solo?'
Lá sei eu, animal
Se soubesse não estaria neste estado
Em que luto com um exército por uma identidade
E cada personagem é feliz ou arrasado
Numa distinta personalidade
Todos gritam 'avante!'
Em uníssono marcham ao desfiladeiro
E pulam de uma montanha sem ver
 - No maior perigo de mim mesmo -
Uma queda infinita numa dimensão abstrata
O âmago de um homem confuso e atordoado
Sem projeções de voo
Ou paz entre povos da mesma nação.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Motivo

Primeiro vem a música e todas as substâncias artificiais
(As quais me recuso a ingerir
E me inquieto ao suportar)
E preciso escutar toda essa conversa de barganha
O que eu cedo e o que tu hás de ceder
No final sendo sempre eu a fazer o sacrifício
Claro que eu o submisso e devoto
(Como diz a estúpida Astrologia
Cheia de ironias e conselhos universais)
E consciente desta posição
Me arrefeço...

Como se fosse uma dança qualquer
Vem e segue teu dia comum
E acende com o fogo que não tem
A vela que ilumina quase nada
Olha para mim e finge esquecer
O descaso que você tem em viver

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Objetos e sentidos



Encaro esta foto de duas pernas cruzadas e esboço um sorriso no rosto ao me lembrar do contexto na qual foi tirada. Entretanto, percebo ao mesmo tempo que ela só tem significado devido a esse ato de rememoração. Caso eu morra amanhã, no meu quarto vão encontrar apenas uma imagem banal de duas pernas em preto e branco, talvez apontando para algo fora de quadro (seria uma pessoa? um outro conjunto de pernas?).

Se as coisas do mundo só fazem sentido por causa das experiências passadas, em qual posição posso me colocar? Sou apenas o que vivi? Penso nisso porque sempre descrevemos uma pessoa ao lembramos as situações pelas quais ela passou. Mas não somos também aquilo que queremos e ainda não vivemos? Por exemplo: "esta é minha amiga, que vai ser piloto de avião" ou "eu sou renato e estudo para um dia ser filólogo". Aqui importa muito mais a perspectiva de futuro - algo de que não sabemos - do que o que já foi vivido. Qual a validade do que passou e do que se espera?

Ao verificar tudo isso, me pego pensando se o mesmo não se aplica aos humanos. Quando formos velhos e nossos pais e amigos tiverem morrido, vamos nos sentir um pouco menores e menos relevantes? Ao nos afastarmos de uma pessoa querida - pelos mais diversos motivos -, sempre sentimos um golpe na autoestima, já que nos distanciamos de alguém que, de certa forma, nos conferia certo sentido neste mundo. Cada um que vive comigo diz um pouco de mim, pois construímos juntos uma realidade que ninguém mais viveu.

O desafio de conseguir se erguer e manter sozinho é conquistar um significado próprio independentemente das circunstâncias, desvinculado de memórias alheias. Para isso, vale ter um objetivo a longo prazo, como uma viagem, um emprego ou alguma outra idealização que nos transponha para uma realidade projetada. Antes de tudo, desenvolver uma lembrança ou perspectiva autossuficiente - isto é, algo que apenas eu sei ou que dependa somente de mim. E depois disso, me olhar no espelho e dizer que, sim, este é alguém que pode sair pela porta e encarar o dia como jamais encarou anteriormente. Dessa forma, o mundo não parece tão ameaçador e o fato de saber que um dia o tempo passa não desmerece qualquer segundo de agora.