quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Número 273

Fazer poesia hoje é difícil
Porque todos antes de mim já disseram o que era pra ser dito
Então não me resta nada
Além de redizer tudo
Para que as gentes não se esqueçam

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Para falar a verdade eu acho a coisa mais engraçada o fato de que a maioria das pessoas que vemos, um dia vai cruzar conosco e fingir que não se lembra.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Varsóvia

Era o primeiro Natal que não passaríamos juntos. Viajaria para a Polônia. O fato de ele viajar não era algo que por si só me incomodasse, mas essas datas simbólicas sempre têm uma poder de mexer com a gente. Óbvio que era só uma janta sem ele, mas também era o Natal sem ele. Eu realmente não sou católico, mas a ceia do dia 24 não é de religião. Não mais: hoje é ceia de união, de comunhão e compartilha. Estava mais triste do que eu, também pelo fato de que passaria a data sem qualquer pessoa conhecida, e essa sua tristeza ajudava a alimentar em mim a reticiência de passar o Natal sem sua companhia. O que é um pouco ridículo, porque passamos 22 anos sem o outro. Isso de lamentar-se pela solitude é um pouco de manha e de vício. Ao menos é o que eu acho. Bom, no momento eu tentava descobrir o que ele achava, porque ficava quieto nas cadeiras do aeroporto interrompendo o olhar somente para averiguar as horas no relógio. Óbvio que estava nervoso e dotado de receios, mas não havia como esperar menos do que isso. Quando me comunicou que viajaria durante o Natal, fez menção de dizer que, se eu quisesse, cancelaria a viagem. Não chegou a efetivamente dizer a frase em voz alta, mas engoliu saliva e olhou para o lado como quem se prepara. Antes de tornar a olhar para mim, falei-lhe que seria uma experiência muito boa e que dela tiraria muito proveito. Entendeu o recado, pois em seguida me encarou e sorriu, para depois ir à cozinha esquentar o leite para misturar com café. A situação ficaria um pouco constrangedora se ele efetivamente me pedisse permissão, e eu lhe desse, porque ficaria em entrelinhas que suas ações são necessitadas de minha aprovação, o que não realmente não ocorre. Mas há nos relacionamentos qualquer coisa de um jogo teatral, de encenação e sedução. Sedução não somente em carne, mas seduzir como ato de conquistar, para conseguir algo de seu agrado e que faça o parceiro sacrificar-se um pouco, para evidenciar afeto.

- Você vai se divertir com sua família hoje à noite? – perguntou-me como que pedindo que eu lhe assegurasse que não choraria de solidão no chão da cozinha.

Sim, vai ser legal, vai estar todo mundo junto, afirmei. O fato de estar todo mundo junto não quer dizer nada, mas falei isso como que para dizer que haveria mais testemunhas de meus sorrisos e atos efusivos. Natal tem muito disso, mas também tem em todos os dias do ano, então realmente não me importo muito. Apenas acho desgastante o fato de todos repetirem que o ano passou rápido, que já é fim de ano (e que está tão calor, meu Deus...) e daqui a pouco terei 30, 40, 50 anos, sempre números cheios que atestem a velhice e, em suas cabeças, porquês de degradação e morte.

- Como comemoram o Natal lá mesmo? – disse-lhe para fazer com que parasse de pensar em mim e passasse a se imaginar lá.

- Eles não comem carne vermelha no dia 24 e fazem uma espécie de cerimônia de perdão para afastar os sentimentos negativos.

Hm. Engraçado que aqui no Brasil, só se pensa em sentimentos negativos nas festas quando alguém se pega no pau. Quando não há nada parecido, tudo é lindo e maravilhoso. Falei-lhe isso. Riu e disse-me que eu pensava isso porque não era de família italiana. Não vi qualquer relação à vista, mas lembrei-me de sua parentada gesticulando e falando alto, Caroline está casando com um homem cujo pai delira em uma cama de hospital, diz que é filho da vida e da morte, que tem pais do mesmo sexo que brigam todos os dias para saber quem fica com a guarda dos filhos. Na hora eu ri alto, mas cheguei à conclusão de que o velho era, afinal, mais lúcido do que muita gente.

Somos todos filhos de Adão e Eva
E da Vida e da Morte
Pedimos misericórdia e um pouco de esperança para encarar o espelho
Enxergar não só olhos e nariz e cabelos
Mas um pouco de alma
E de força nos olhares que sustentam nossa carne

A voz feminina avisou que ele deveria embarcar. Passageiros para Varsóvia etc. Não entendi muito bem na hora porque meu coração bateu mais forte, e nessas horas em que o coração bate mais forte a gente se transporta para outra realidade: não falamos a língua que nos habituamos a falar, suamos mesmo recém saídos do banho, cegos mesmo em um salão enorme de um aeroporto asséptico. Nos levantamos vagarosamente. Perguntei se estava ansioso ou angustiado.

- Acho que já vivi em tanta angústia e ânsia que me habituei com ambas – respondeu-me enquanto dava a mão direita. Engraçado como conseguiu ser poético sem ser piegas ao mesmo tempo. E sem faltar com a realidade também. Gosto de sua poesia.

Chegando perto do detector de metais, encarou-me e disse-me que traria todos os jornais diferentes que encontrasse. “Esquece isso e vai gastar tempo com você”, eu respondi. Óbvio que achei o máximo ele falar isso, mas também me controlei para não ficar com um ar de convencido. Não adiantou.

- Mas não vá ficar convencido – disse sorrindo enquanto passava o indicador no meu queixo.

Enveredou-se pela ala de embarque.

Nunca mais o vi, porque uma semana depois foi esfaqueado por uma prostituta enquanto tentava forçá-la a fazer sexo sem camisinha.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

E quando vier a hora do arrependimento

E quando vier a hora do arrependimento
Direi que vá embora
Basta de arrependimentos
E de melancolias antes de pegar no sono
Não me agradam os sentimentos soturnos
E aqueles que dominam a razão quando não estou a vigiando
Chega de querer voltar para trás
Olhar para por cima do ombro nunca me fez prever o futuro
E também não quero saber de futuro
Não quero saber de horas
Por mim que as horas cheias queimem
E sobrevivam somente aquelas vivas
De números iguais, em pares agradáveis
12:12
Dez e dez
Números elegantes que me façam pensar
Que minha cama não é habitada só por mim.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Guerra nos céus

E saberão dos meus desagrados e desgostos
Me pegarão pela mão e dirão que
Não
Que ainda não é a hora
Que não devo manifestar-me
Que devo calar-me até segunda ordem
Divina, maléfica em segundo plano
Até que conquistem o paraíso onde deuses habitam
Fazem orgias, bebericam vinho seco
Estalam suas línguas preguiçosas
Até que tomem o poder dos poderosos
É minha missão quedar-me quieto
Então beberei champanha importada
Brindarei aos meus defeitos
E cuspirei na cara destes que me dominam até que
Sim
Subirei aos céus
Vestido de armadura dourada e sapatilhas leves
Baterei à porta do paraíso e multiplicarei o ódio que dominará as minhas entranhas
Anjo contra anjo, deus contra deus
Todos haverão de apunhalar-se
Beberão seus vinhos secos enquanto portam espadas afiadas
Lâminas machadas de sangue nobre
Um a um
Lutarei contra deuses alados
Faca contra faca
Deuses sábios, promíscuos, sacerdotes
Homossexuais, arrogantes e pernetas
Deuses em poltronas confortáveis
Tronos ornados a dentes de macacos
Ossos já fedidos, clavículas de uma guerra antiga
Tapetes vermelhos de sangue divino
Bobos da corte revoltando-se
Tomando o poder
Degolando deuses gordos e barbados
Vinho repartido
Pão de centeio já dormido
Dominando mais um desagrado
Que hei de deixar para o amanhã

domingo, 19 de dezembro de 2010

Feliz em um ônibus lotado

Eu nutro profunda fé na humanidade ao ver carros se jogando ao meio fio em uma avenida congestionada para dar passagem a uma ambulância com a sirene ligada.

Porque é como se um mar se abrisse para dar passagem à vida e é como se, no fundo, todos soubessem que há coisas mais importantes do que chegar o mais rápido possível ao seu compromisso. É como se no fundo soubessem que no momento o outro é mais importante do que si mesmo, e isso


impulsiona o meu mais íntimo, porque me lembra de que a indiferença e o egoísmo não são a pura essência do ser humano.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Número 257

E se há lições para se aprender
Não é hora de deixar o jogo acabar
Entre todos nós
Que fazemos parte deste tabuleiro
Chamado vida
Onde não sabemos quem controla os dados...

domingo, 12 de dezembro de 2010


Por Viviane Mosé 

acho que a vida anda passando a mão em mim.
a vida anda passando a mão em mim.
acho que a vida anda passando.
a vida anda passando.
acho que a vida anda.
a vida anda em mim.
acho que a vida anda em mim.
a vida anda em mim passando.
acho que a vida anda passando a mão em mim.

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lágrima é dor derretida
dor endurecida é tumor
lágrima é alegria derretida
alegria endurecida é tumor
lágrima é raiva derretida
raiva endurecida é tumor
lágrima é pessoa derretida
pessoa endurecida é tumor
tempo endurecido é tumor
tempo derretido é poema

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

O último poema a ser escrito

Este é o último poema
A ser escrito pelo ser humano
De todos, o último
Emitido pelo cérebro
Não é tão bonito quanto os primeiros
Mas é o último, e isso
Ninguém tira dele (ele,
Que é o último poema a ser escrito).
A humanidade toda
Ovaciona este poema
(E todos choram de tristeza...)

O último poema.
Quando acabares de lê-lo
Não haverá mais nada, exceto
A releitura de poemas.
Então todos irão relê-lo sem parar...
(Este, o último dos poemas)

O planeta todo chora
Achando que é o fim da poesia.
Todos erram, no entanto:
Poesia se renova. Todo o dia
Todos fazem poesia
Nos diminutos atos, ao acordar
No mais cego beijo ao amante
(No beijo do amante mais que cego)

Todos choram com o fim da poesia
Exceto o menino inocente que dança sozinho:
Na pista de dança, o único
A celebrar a alegria. Não chora
Porque ele próprio é poesia
(Não chora porque o tempo é ele).

O menino é renovação
Assim como a poesia: o menino
É o círculo da vida
Que gira e move as águas da razão...

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Pedro

Há uma pedra em minha frente: branca
E preta, do tamanho de um boi.

Encaro a pedra como se ela pudesse me encarar
E de repente sinto o que ela sente, a terra
Fria e o sol aquecendo em cima.
E de repente sou a pedra,
Toda ela, todo eu, sou Pedra.
Não, não Pedra
(Porque meus pais me fizeram masculino), sou
Pedro. E como gosto de sê-lo
Pedro, e totalmente dentro dele, eu o sou
E nisso perco minha identidade anterior.

Agora sou novo
Pedro, por todo
Redondo, preto e branco

Um casal se deita sobre mim
Trocam juras de amor
E de repente sou todo paixão e sangue e sexo
Sou vários fluídos, sou
(Masculino e feminino) ambos, ele
E ela, sou o amor dos dois.
Os corpos tremendo sobre mim,
Sou vários. Pedro, Ele e Ela, amor
E gozo e sentimento
(Se não fosse a pílula, seria ainda mais
De mim, que agora não sou...)
Sou redondo, preto e branco, vermelho
De sangue através das veias
Sou branco (não de gozo mas das mentes no orgasmo)
Sou Pedro, e não Pedra
(Porque me fizeram masculino)
Sou luxúria e paixão, o calor
Do sol e dos corpos, sou
Pedro e pedra
E por agora só
Pois o casal se foi embora
Com todo o amor que eu era
(Então sou só Pedro
Preto e branco, redondo)
O casal foi embora,
E eu

Transformei-me em poesia,
Sem rima, no papel em branco,
Sou todo êxtase e alegria de se ver,
Eu sou poesia: Pedro,
Preto e branco, redondo
(Do tamanho de um boi), poesia
Lida de manhã ou meia-noite,
Palavras musicais, sou todo o ar
Que preenche tua mente, sou
Pensamento à espera da fusão

E de repente sou você,
Pedro e pedra,
Tua visão
De poesia e de amor
(Sangue e gozo)

Tudo o que você pensou ser
E que será em um dia.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Flauta Doce

Sabe o que é um soneto?
eu também não sei muito bem
olhei para dentro de mim
e falei
sai, sai daí um soneto ou então
uma poesia mais chata
porque acho sonetos chatos
vamos ver no que vai dar
essa poesia difícil
mais hermética
vê se sai daí
saiu a canção da flauta doce
não é um soneto
porque estes tem quatro estrofes e uma composição fixa
versos deca e dodecassílabos
a canção da flauta doce, não
ela é mais simples
deixa eu entoar:

caham

deixa eu ajeitar a voz
a garganta tá seca

caham

Canção da flauta doce
Tocada de manhã
Servida com bolachas e mel

Canção da eternidade
Cantada por alguém com a morte
Pautada em seu caminho

Canção que alumia
Que leva o fogo-fátuo
De volta à sua origem

Canção das suas origens
Que trazem de volta
O passado e sua vertigem

Canção da flauta doce
Canta para mim uma canção de ninar bem
(E que me rememore quem sou eu...)

cantei agora
obrigado por sua atenção
adeus.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Medos

Ah, não, eu admito: sou todo medos

Medo de aprender a voar
E prever minha morte do céu
(A morte, temo-a muito)
Imagina se eu não morresse nunca...

Também temo perder as consciências
(Ambas, pois tenho duas)
Medos de desaprender a me expressar
E perder o verbo, medos
De me apunhalarem enquanto durmo
(Já me basta enquanto acordado)

Sim, medos
De perder a fé na fé
Que por agora é o que me move
Medo
De perder o movimento
E o time com as pessoas
(Medo de perdê-las todas), medos
Que me tomam o corpo
E me tiram o ar

E fico cheio de dedos para o ser e o estar.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Estranhos


Deu vontade de falar sobre o Rio de Janeiro: toda essa desgraça, esse nojo que dá de os jornais mostrarem como se o bem tivesse triunfado sobre o mal, que agora as cidades estão salvas e todos podem voltar às suas vidas normais. Mas não entendo muito de política, então fiz um texto com umas coisas que pensei.
Há muito tempo, uma amiga me falou sobre um conhecido que trabalha no BOE (Batalhão de Operações Especiais). Numa batida na casa de um traficante, encontraram somente a mulher do cara. O pessoal do BOE perguntou onde estava o bandido. Ela disse que não sabia. O conhecido da minha amiga pegou a cabeça da mulher e bateu cinco vezes na parede. Na sexta, ela disse que tinha lembrado onde ele estava. Falou toda errada porque ficou com o nariz quebrado. 
Comentei para minha amiga que achei um exagero. Ela respondeu que a mulher era uma vagabunda, que compactuava com tudo, e eu não tinha que ter pena. Não era pena o que eu sentia, mas não achava muito certo o que o cara do BOE fez. Comentei sobre isso com um amigo que faz Filosofia, que disse que a polícia é isso, que não se importa em fazer sofrer ou não, que a sua função é manter a ordem. Não os policiais, mas a Polícia. Acho que não só a ordem, mas o silêncio também. A calma. Faz meses que tivemos essa conversa, mas eu ainda penso nisso. 
Primeiro porque precisamos pensar o que é a ordem. O que a define, o que a compõe. A ordem, por si só, não existe. É abstrata. Sua existência depende de nós. Nós é que encarnamos a ordem. Nós é que fazemos a ordem. Não é a Constituição Federal, o Código Civil que a fazem. Eles são somente livros que nos guiam. Assim como os xiitas usam o Alcorão para pautar sua cultura, costumes e leis, nós encarnamos a Constituição e nela é que pautamos nossas ações. Se o Lula fizer uma emenda e disser AGORA CÊS PODEM COMPRAR UM BECK, a ordem muda. Um novo valor passa a ser incorporado, e a polícia não vai mais caçar aqueles que compravam maconha.
A ordem é algo como uma geléia. Um monstro-geleia. Quando requisitado, deforma-se e engole o alvo. Isso me parece um pouco horrível, porque dá a impressão de que a polícia é um agente de sustentação da nossa alienação, já que caça a diferença, o fora da Ordem, e deixa livre quem com ela concorda. Porém esse viés de enxergar a polícia como aqueles agentes carecas do Matrix é meio surreal, né? A polícia é só repressão?
Zigmunt Bauman é um teórico que diz que a nossa sociedade se divide entre os estranhos e os incluídos. Incluídos somos nós, classe média compactuante com o sistema, que paga imposto, vai para o colégio, faculdade, shopping, praia etc. Excluídos são todos aqueles que não seguem a ordem - e fogem à regra. Os loucos, os ladrões, os que moram em favelas, os índios etc. A sociedade, em busca da ordem, tem duas maneiras de lidar com os estranhos:
- Maneira antropofágica: aniquilá-los, devorá-los e regurgitá-los de volta, adaptados e assimilados. Nike e adidas ae.
- Maneira antropoêmica: banindo-os dos limites do mundo modelo e impedindo a sua comunicação com quem nele mora. A mídia entra aí para mostrá-los com um viés policial, de banditagem e pouco humanístico ou até mesmo absurdo - vide costumes indígenas. Segundo a série Ser ou Não Ser, do Fantástico, o Focault também fala disso. Diz que excluímos os estranhos para eles não influenciarem outras pessoas na busca da ordem.
Desenvolvendo este raciocínio, a polícia é um agente de sustentação de alienação. Sustentação porque caça a diferença, o fora da Ordem, e deixa livre quem com ela concorda. Voltando: a polícia é só repressão? E a ordem? O que ela é? Quem tem direito de dizer que é isso e não aquilo?
 Enfim. Se a maconha é liberada para compra e venda, a polícia não prende mais quem faz isso. Os compradores tornam-se incluídos. É o monstro-geleia se adaptando. A polícia é um dos braços deste robô. Ela tem um radar, acionado pelo monstro. Quando o governo muda uma lei, o monstro modifica-se, manda uma nova versão do programa para a polícia-robô, que não ataca mais as pessoas que compravam maconha. Os compradores agora têm o privilégio de serem, por agora, poupados pela polícia-robô. Os agentes da alienação deixaram você viver. 
É um pouco apavorante crer que nossa segurança está nas mãos de uma corporação assim. Ela é volátil, no fim, porque é parte de um monstro que se adapta o tempo inteiro. A geleia é o fim: decifra-me ou devoro-te. Assimila-te ou exclui-te.  A diferença não tem lugar nisso. Aliás, ela não tem lugar nem na cabeça das pessoas. A maioria adora dizer que não é preconceituosa e caralho a quatro. Queria ver se todo mundo ficaria normal se um travesti viesse bater papo. A diferença é defendida por todo mundo, porém a maioria, no fundo, não gosta quando a diferença é distinta dos seus próprios conceitos.
Enfim. A ordem, na verdade, não existe. Nós a incorporamos. Nós a incorporamos contudo ela nos controla. O sistema todo é algo assim: um vírus que não existe, mas que comanda tudo. Esse texto tenta fazer refletir até que ponto a ordem é-nos positiva. Você não teme ficar fora da ordem? Imagina se amanhã o governo baixa um catatau de emendas que te enquadram como um estranho. A partir de hoje, quem tem tatuagem será preso. Quem escuta música com mais de dois minutos, fica por 11 anos na cadeia. Não dá uma sensação estranha? Imagina se amanhã todo o teu ser é estranho, e resta a ti ser assimilado ou excluído? 
Ao cabo e ao rabo, nós todos somos, em realidade, reféns uns dos outros. Porque contamos com a piedade e misericórdia de que o outro nos aceite e considere-nos normais, não nos julgando como estranhos. Assim não somos expulsos da sociedade e vivemos felizes nela. Talvez aí se explique o porquê de nos irritarmos com as diferenças. Todo o ato libertário é dotado de contestação, de questionamento à ordem vigente. A nossa reação é recriminá-lo, porque no momento em que podamos a diferença, a geleia não se transmuta e continuamos sabendo o que ela requere de nós. Ao saber como devemos nos portar, efetivamos as suas exigências e continuamos incluídos. A ordem não muda, e nós seguimos sabendo o que ela de nós exige. 
Falei tudo isso para chegar ao Rio, mas nem sei mais o que ia falar. Hn. Até que ponto é bom para a sociedade meter tiro nos traficantes?  Excluí-los já é horrível: matá-los não é pior? Aliás, alguém ainda acha que matar é a solução? Quem tem o direito de tirar a vida do outro? Por que no momento em que você mata, você assume que a sua vida é tão mais importante do que a do outro, que ele merece morrer, e você não. Se você é o carrasco, é ainda pior, porque nas suas mãos é efetivada a maior prepotência do mundo: dizer sem nenhum som que sua vida é, sem dúvida, mais cara do que a do outro. Claro que eu não falo isso nos casos de autodefesa. Aliás, parece até que eu estou defendendo traficantes, mas não, só estou vendo-os como seres humanos. O maior dilema é tentar realmente incluí-los (eles e todos os outros estranhos) não só com Bolsa-Família, cotas e afins. Não que tais programas sejam ruins, mas todos sabemos que sozinhos não resolverão nossos problemas (sim, filho, filha, são nossos problemas também). Como efetivamente incluir um grupo que está à margem, porém tão grande, que se uniu a ponto de meter medo nos que estão ao centro? 
A maior ironia de tudo isso é que nós, incluídos, trancamos os estranhos dentro de presídios, manicômios e reservas. Agora, os estranhos estão nos trancando dentro de casa com medo da violência. Quem é estranho e quem não é agora? Começou a reação de um grupo social que ninguém dava a mínima. Acho que esqueceram que o ser humano precisa de reconhecimento externo para ter certeza de que sua existência é factual. O quanto mais cedo reconhecermos que os excluídos, têm, sim, problemas de verdade, melhor. Aliás, aí está outra prepotência nossa: pensar que os problemas do outro não são tão difíceis. Isso se manifesta na psique de uma pessoa tanto quanto na sociologia de um grupo.

Foram todas

Não acordaste enquanto eu morria em nossa cama

(E até hoje choro de amargura
Da ternura
Que eu sonhava
Na compreensão enigmática
De nem falar
E me fazer entender
De criar mil faces
E me perder em cada uma
E até hoje eu choro de amargura
Por saber
Que me fazer difícil
Me fez incompleto

Quebra-cabeças de mil peças
Herméticos
Indecifráveis
Mas se na hora de saber
Eu chegasse a uma saída?)

E se houvesse doze vidas pra viver?

sábado, 27 de novembro de 2010

Eu não quis me perder por aí

ai minha mãe me ajuda aqui
que tenho tanto pra mostrar
mas me sinto tão pequeno...
é tanta coisa, que o fogo lá de dentro
me consome

pois sim. ultimamente eu pensei em tanta, tanta coisa, que não quis escrever. dá pra entender? eu não sei direito, acho que amadureci tanto que qualquer tentativa de escrita era inútil pra testemunhar a mais pequena das coisas que aprendi. ou talvez nem saiba escrever. aliás, adoro isso, essa incerteza da gente, essa indecisão, essa pequeneza e baixa autoestima, sei ou não sei, se sei escrever, se posso ser um bom jornalista, uma boa pessoa, um bom amigo e filho e ser humano. e bom pai? olho para as pessoas e imagino como seriam elas com seus filhos. se bateriam pela menor das razões, se evitariam sempre o tapa, o grito, o xingamento. e no casamento, como seriam com seu amor amor, ai, ai, melosos ou não, ríspidos quem sabe, aquela coisa de terminar o ato e querer ficar de conchinha ou virar-se de costas e dormir. e se dormem. quantos por aí roncam. quantos por aí dormem de bruços, de lado, de barriga para cima. se dormem de pijama ou não. e como acordam, mal-humorados, bem-humorados, de mau-hálito, de bom sorriso, com fome, com gana, com tesão. e quantos por aí não exaltam seu tesão pra se afirmar, quem sabe. nem sei. e tantos poetas por aí. seu poeta, sua poetisa, mostra-te, mostra teu ser, mostra teu ato, em cada gesto uma poesia. cada pessoa com um pouco de poesia no seu ser: e as personalidades nela se mostrando. uns têm poesia rimada, outros não, alguns com ela rica, com métrica, tercetos, quartetos, tônica na penúltima sílaba, estrofes musicadas, musicais em cada cena.

mas fale mais alto por favor é que
as gentes não escutam poesia
é preciso falar mais alto
pra que todos ouçam.

(recita mais alto
o teu poema
que é de carne ou osso
de espírito
extrema unção antes da foice.

num só coice
a alma resumida
numa estrofe.)

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Maneiras

Pare de pedir que cessem o grito
É deles o direito
De extravazar a raiva
Prefiro o tapa dos amantes
Ao silêncio dos otários

Aliás, prefiro não ter horário

E correr atrás do ônibus
Com todo o pique
Sorrir para o cobrador e dizer que foi por pouco
E que sou um pouco louco

Por preferir o amor
E a ocasião
Que dão frutos-poesia
(De grande envergadura)

Frutos de muito pouca amargura.

domingo, 21 de novembro de 2010

De tão perdido no mundo que não há mãos que tragam de volta para a Terra

E se sentir sozinho como se ninguém ouvisse
Ou entendesse
E afundando
Naquele mar profundo que é
Você

...

...

...



.


(Penso nas pessoas que moram sozinhas em uma cidade estranha e acabo por achar que a única fuga para elas é escrever e criar vários personagens de maneira que façam companhia na hora mais soturna da madrugada, para do frio mais perverso fugir e tentar reagir da maneira menos provável que é não chorar e chorar de solidão. E para todas essas pessoas eu agora digo que a solidão é às vezes exaltada como caminho à profundidade, ao autoconhecimento, à intelectualidade, mas que na verdade é tudo bobagem pois ela é algo que serve apenas para atestar a maior insanidade que temos dentro de cada um: e isso, isso é o que mais machuca, saber das nossas loucuras e incertezas que lutamos tanto para dominar. Porém na solidão somos nós os dominados, visto que o campo de batalha não nos favorece. Pois digo que lute, lute contra as tuas incertezas, porque da solidão é impossível fugir.

E no final estamos todos sozinhos neste mundo...)

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Das tuas raízes mais profundas

Árvore é o ser mais bonito que pode existir por aí, porque só de respirar perpetua vida.

Ai de mim se eu fizesse o mesmo.
Respirar e trazer vida.
E expirasse uma saída
Para todos estes males
Que tem por aí
Na lida
Do pequeno livro de contos
Que enfeita a cabeceira
Imaginar o mundo (belo)
E trazer a si mesmo
O cheiro da fazendinha
Que não existe
E bem por isso
Me fizesse feliz.

Ai de mim se eu soubesse de mim mesmo.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

A primeira respiração após o coma

A primeira respiração após o coma
Não é suave
É longa
Como abocanhar uma maçã em uma dentada
Engolir o fogo que antevê a morte
E desejar sorte aos seus capangas
Que num tiro já explodem sua cabeça

O ar entra voando
Mas na garganta pesa (a consciência)
A virgem logo reza
E procura expiar os pecados que hão de acontecer
(Daqueles que já foram
Só lhe basta enternecer)

A primeira respiração após o coma
Acontece de maneira
Rápida
O doente sente o ar e toma
A devida precaução:
Nunca mais respirar
Da maneira como respirou em coma

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Inerte

O problema é que eu espero demais da vida
E a vida espera demais de mim
Então ficamos ambos parados
Esperando a morte chegar

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

São Manoel

Luciano Martins Indon tem 54 anos. Não é alto nem baixo. É motorista de ônibus. Acorda às 6:15 da manhã para chegar dez minutos mais cedo ao trabalho. A mulher é costureira, os filhos estão no ensino médio num colégio estadual. Luciano Martins Indon senta em uma cadeira com uma almofada a mais no assento, por causa das hemorroidas. Leva uma garrafa d'água aos pés. Dirige a linha São Manoel, quase sempre com o mesmo cobrador (e já são quase amigos...) mas o que mais deseja é as linhas circulares - C1, C2 e C3. Por quê? Porque a maioria das pessoas é cheirosa. É gente que pega condução para ir pra faculdade, pro Mercado Público, pra ir pro médico. A maioria cumprimenta.

Estava com pressa para comer as bolachas que a Mulher empacotou. Parou no Mercado Público e esperou a fila entrar. Entrou gente jovem, gente velha, gente que parece que daria oi, gente que parece que fingiria que Luciano Martins Indon não estava ali. Desta vez, uma moça subiu com uma mochila pesada e  filho no colo. O filho deu oi, e Luciano Martins Indon deu oi de volta. A Moça com o Filho passou por Cobrador e sentou num assento longe. Entrou um garoto. Eu disse:

- Bom dia.
- Bom dia.

Ponto. Henrique João Azevedo tem 28 anos. É magro e hemofílico. Cobrador de ônibus. Trabalha na linha São Manoel. Acorda às 7:00 da manhã para chegar 10 minutos atrasado ao trabalho. Tem uma namorada que ele pensa que o trai. Mas não tem certeza: e já que estão morando juntos, vai esperar alguma prova. Mas só uma. Enquanto isso, olha as mulheres semi-nuas do Diário Gaúcho. Não sabe, mas as cores do jornal deixam-no confuso. Mesmo se soubesse, ainda compraria, porque é o que o dinheiro deixa. Estuda à noite para o concurso da CEEE. Seu sonho é trabalhar em um lugar com ar-condicionado.

Enquanto isso, são 10:15 da manhã, e o ônibus parou no Mercado Público. Entraram várias pessoas. Uma delas era sua prima de terceiro grau com uma mochila do exército pesada e um bebê no colo. Henrique João Azevedo olhou para baixo e fingiu não a reconhecer. Ela não o reconheceria como cobrador. Ele não se reconheceria como cobrador. A prima e seu filho sentaram na última fileira. Ela encarou ele, porém não falou nada. Henrique João Azevedo ficou nervoso e começou a pensar se ela comentaria com alguém do primo cobrador. Enquanto isso, passei pela catraca e disse:

- Bom dia.

Ponto. Vanessa Assunção Azevedo tem 33 anos. Não é alta nem baixa, mas usa salto alto. Passa batom vermelho nos lábios para esconder os cortes feitos em brigas com o marido. Trabalha em um call-center. Está fugindo de casa pois não aguenta mais as agressões. Vai para a casa de uma colega de trabalho. A gota d'água foi o filho ter corrido para ela quando viu o pai chegar em casa. O filho nunca tinha dado um passo em pé.

Na mochila, está tudo o que o nervosismo permitiu pegar 20 minutos após o marido ter ido ao serviço. A única coisa que pensa é que não pode trabalhar mais onde trabalha. Não sabe o que vai fazer da vida. Não sabe como vai comer. Não tem família, e justamente por isso é que havia se mudado para a casa do homem que até agora lhe estendera a mão. Não para dar comida.

Espera ansiosamente o São Manoel chegar. É o segundo ônibus que pegará para chegar à sua amiga. Chegou. Vanessa Assunção Azevedo sobe e finge que não vê o motorista. Passa pela catraca e dirige-se à última fileira. O Marido levará umas oito horas para chegar em casa. Quando descobrir, ligará para o trabalho dela. Não adiantará, porque Vanessa Assunção Azevedo já terá se demitido. Já tem arranjado um trabalho no call-center da concorrência. Pensa em, um dia, talvez, ligar para o ex-marido, e, quem sabe, ver se uma mulher atende o telefone. Se atender, falará rapidamente que a mulher deve fugir, que não espere mais, que não dê outra chance porque na próxima vez não será diferente, corre, corre, eu sei o que eu falo, você merece alguém que te ame da maneira como você sonha, então foge, amanhã você faz normalmente a marmita dele e sai de casa 20 minutos após ele passar pela porta, vai para a casa da sua família, da sua melhor amiga, mas corre, olhe para seus hematomas e corra sem olhar para trás porque a vida é pequena, toda a sua angústia, a sua culpa, nada faz sentido, o que faz sentido é que você corra, não correr dele, mas correr em direção àquilo que você merece.

Pedi licença e sentei ao lado dela.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Uma carta na gaveta

Eu escrevi há um ano esta carta. Mas não é
Bem carta. Os meses passaram,
As letras borraram,
O sentido esvaziou.
Só me resta
Fazer do que ficou
Certo tipo de mudança.

Cortei palavras
Uni alguns fonemas.

E fiz do que queria
Um poema

sábado, 30 de outubro de 2010

O Brasil de todos



O Brasil é formado por seis letras e 191 milhões de pessoas. Agora que você leu isso já são mais. Umas morreram, outras nasceram, no entanto a maioria ainda vive. São novas pessoas, porém o Brasil ainda tem seis letras. Mudam as pessoas e as pessoas mudam, mas a nossa ideia de nacionalidade se mantém, nos dando a sensação de que estamos unidos e de que algo que não vemos nos conecta de maneira inexorável. Nacionalidade é como Deus, no que diz respeito a ser um motivo que nos une. A diferença é que todos concordam que nacionalidade existe. Nacionalidade é um conceito bem abstrato, mas talvez nação seja mais. Stuart Hall fala que a Nação é um "sistema de representação cultural", e, a partir dela, todos nos uniríamos. "Nação é uma comunidade simbólica, e é isso que explica seu 'poder para pegar e gerar um sentimento de identidade e lealdade' (Schwarz)". A cultura conecta as pessoas, através de uma cultura nacional, que representaria a identidade de toda a população regida sob um teto político. Esta cultura se construiria (construir-se-ia...) através de  vários fatores, como padrões de alfabetização, uma só língua para se comunicar, formação de instituições culturais etc. 

Todos esses conceitos, na minha opinião, entram em xeque com o nosso mundo, porque num só país existem várias culturas quase opostas, mas que se unem por causas políticas. O Rio Grande do Sul é muito mais parecido com o Uruguai e Argentina (velha comparação esdrúxula) do que com o Nordeste. E mesmo assim, não faz parte desses países. Ciência política, venha a mim, por favor.

Enfim, o horário político começa, aparece a Dilma e o Serra falando do "nosso" Brasil, do "nosso" pré-sal, "nossas" florestas, "nossas" terras e blablablá. Mas será que tudo isso é nosso? Você pode ir até o pré-sal, esperar extraírem o petróleo lá de baixo e pegar uns litros num baldinho? Não pode. Porque isso não é seu. As terras não são suas, nem as florestas, nem o pré-sal. Nada é seu: é da sociedade. E para fazer parte da sociedade, é preciso estar inserido no conceito de nacionalidade, de nação, deter os signos culturais que nos "unem". Quem não detém nada disso, fica fora, porque não faz parte da "nossa" nação, não tem "nossa" cultura, não é digno de ter "nossas" florestas e terras e pré-sal. 

É tudo seu. É tudo de ninguém. 

A sociedade são todos mas ninguém é sociedade. Para estar inserido em uma, é necessário abdicar do benefício próprio na maior parte do tempo. Você nunca vai estar sempre contente em sociedade. Um amigo disse, ironicamente, que o governo Lula não fez nada por ele, mas porque já tinha comida na mesa. Completou que "não pensar só em si é importante, às vezes".

O meu amigo abdicou da felicidade própria para que outro fosse feliz. Viver em sociedade é isso, é constantemente se anular para que o outro não se anule. Às vezes a gente espera que o outro se anule para que fiquemos felizes, porém às vezes não dá certo. Porque o outro não quer se anular nunca, porque é egoísta e se esquece da gente.

Há um tempo, eu pensava que o governo era ruim porque a maioria das pessoas votava pensando mais em si do que nos outros. Mas não penso mais assim. Hoje peguei ônibus com uma senhora com cara de interior. Tinha o rosto bem vermelho de sol, algumas rugas na testa e uns pés-de-galinha ao redor dos olhos. Acho que o tempo já lhe deu a mão. Começou a conversar comigo e disse que votaria no Serra para acabar com a corrupção, pois o Lula tinha um filho dono da Oi e deveria ser corrupto (?), porque o Serra é muito bom na saúde, porque o Bolsa-família só ajuda vagabundo. Falou várias outras coisas, mas nada que me levasse a pensar que votaria no PSDB somente para se beneficiar. Também queria ajudar os outros. Então cheguei à conclusão de que o Brasil é como é - politicamente falando -, não por causa da falta de vontade da população em querer ajudar os outros, mas por causa da falta de vontade dos políticos de fazê-lo como principal objetivo. Penso que todos, repito, todos os políticos querem ajudar a população. Alguns querem mais do que outros. Alguns pensam que com um pequeno esforço já foi creditado seu "dever" para com o eleitorado, e que agora é hora de pegar a sua fatia. Veem que não faz mal pegar uns trocos para se beneficiar, como pagamento por sua generosidade. Talvez sua nacionalidade (e nacionalismo) não sejam tão intrínsecos à personalidade, talvez não vejam que roubar do dinheiro público é roubar de si mesmo.

*

Há algumas semanas, vi que aquelas novas paredes cinza do Arroio Dilúvio, na Avenida Ipiranga, haviam sido pichadas Na hora pensei que era uma droga isso, pois já tinham estragado o negócio limpinho. Contudo comecei a refletir por que umas letras em preto numa parede nova me irritavam. Acho que era meu senso de ordem sendo acionado. Aquilo de estar tudo sempre certo, no seu lugar, com seu objetivo. O objetivo das paredes cinza do Dilúvio são estar lá. Só: estar lá para a sociedade. O fato de a maioria da população não querer paredes pichadas justifica os pichadores não poderem pichar? Por que os pichadores é que devem se anular, se são sempre eles que o fazem?

Pichadores também fazem parte da sociedade, então também vivem no sistema se-anular-e-esperar-que-outro-se-anule. Mas são sempre eles, - os pichadores - que se anulam. Nós (este nós engloba todos que não são pichadores), não. Queremos sempre que nossa voz seja a que fale mais alto. Pichadores são sempre marginalizados: por "depredar" o espaço público e "enfear" paredes. Mas porque não podem ter direito a usar muros da maneira que quiserem vez em quando? Só eles se anulam, só eles ficam calados. Não que eu esteja pregando a pichação: só quero questionar o fato de classificarmos o ato de pichar como algo ruim e errado. No caso de que falei, as paredes cinza do Arroio Dilúvio representam todo o estado de ordem que o Estado prega. Os pichadores que escreveram letras negras são a voz dissonante, que quebraram o ordinário por meio das palavras. Berraram, acabaram com o silêncio imposto pelas paredes antes não tocadas. A gente se irrita porque não gosta das coisas fora do lugar, desta imprevisibilidade que a desordem nos impõe. Os pichadores gritaram nas paredes. Quebraram um silêncio cômodo que se instalou como nuvem em meio ao nosso dia a dia. Mas ninguém quer ouvir esses gritos. Ninguém nunca quer ouvir.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Um pouco de mim

Um pouco de mim:
Defina
De fina certeza
Ou não
Defina:
E grande aspereza
E de sorrir
De fazer bem
Defina:
(Amar sem saber quem)
O pouco que quebra e cai

Metade de mim é o que vem
E a outra é o que vai.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

As mães não querem mais filhos poetas

As mães não querem mais filhos poetas.


A esterilidade dos poemas.
A vida velha que vivemos.
Os homens que nos esperam.
O amor que não chega.
As horas que não dormimos.
A ilusão que não temos.


As mães não querem mais filhos poetas.


Deram o grito 
desesperado
das mães do mundo.



Hilda Hilst, Baladas

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Não te faça louco

Há um certo misticismo nos extremistas, pois eles têm algo pelo que defender.

Além de sua vida, o que você defende?

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Serial Killer

Tinha um homem na rua, e eu imaginei como seria se a velhinha perto dele o matasse. Se eu o matasse.  A morte é fácil. Mas acho que a verdade é que somos todos assassinos em potencial. Por exemplo, hoje 

Você estava na parada de ônibus e com pressa o esperava chegar, a fim de ter tempo para cumprir a sua rotina. O ônibus lentamente parou. Você entrou. Você poderia ter se jogado na frente dele e ser atropelado, você poderia ter esperado passar o próximo ônibus: poderia não ter pegado qualquer linha e ido a pé para casa, mas você não fez nada disso. Você pegou o ônibus na hora em que pegou. E ao fazê-lo, você se fez serial killer. Porque no exato momento em que entrou no ônibus, e a porta se fechou, você assassinou todas as possibilidades de um você em uma outra situação. Morreram Você que Foi a Pé para Casa, Você que Esperou o Próximo Ônibus, Você que Morreu Atropelado e infinitos outros vocês que não há como saber quem são porque já morreram. A porta do ônibus se fechou, e nesse instante, foram fuzilados outros vocês que nunca mais existirão. E, não,

Não adianta dizer que todos os diferentes vocês eram Você. Porque não eram. Se você se atirasse em frente ao ônibus, teria um desenrolar de fatos bem diferente do que se tivesse ido a pé para casa. Poderia ter morrido, poderia ter entrado em coma e causado uma catástrofe familiar, poderia perder as pernas e ter de usar uma cadeira de rodas, poderia até ficar uma semana no hospital e sair de lá andando. Porém mesmo que a última coisa acontecesse, seria um Você diferente, porque teria em si a experiência traumática de ter sido atropelado: experiência que afetaria todas as próximas de uma maneira meio inconsciente.

Hoje você matou várias pessoas, matou várias destinos, você matou também os filhos de um Você num destino louco e bizarro, você afetou sua família e seus amigos de uma maneira irreversível, e não há, não há como voltar, não adianta se arrepender, você matou vários Vocês e várias experiências que nunca acontecerão, e mesmo que aconteçam, não serão a mesma coisa pois as circustâncias também fazem uma experiência, um atropelamento na Farrapos é diferente de um atropelamento na 5th Avenue, você assassinou simultaneamente vários corpos e destinos, e não há como se redimir, isso que é o pior, você matou várias pessoas e não há quem te julgue, não há quem aponte, não há como expiar seu pecado, você matou várias pessoas porém as consciências delas te habitam.

Você é um serial killer: hoje e amanhã você mata. Você mata sem remorso. Só de ler esse texto você já matou várias pessoas, e não adianta correr, porque elas já foram enterradas dentro da sua alma. 

(Mas não chore: 
é o mais forte
quem sempre sobrevive)

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Eu não sei de quem é este trecho, só sei que peguei da Folha de S. Paulo da semana passada:
Se o amor da sua vida não te ligar no dia seguinte, será que continuará sendo o amor da sua vida ou apenas o amor da sua quinzena?

sábado, 9 de outubro de 2010

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Ocasionalmente

Acho que se todos vivêssemos num desenho animado, as coisas seriam mais fáceis. Tudo seria mais colorido, mais digerível, mais palpável. Os vilões e bonzinhos seriam mais nítidos e simplificados e estereotipados. Simplificados porque um vilão sempre é só vilão, sem parte boa - ao menos nos desenhos (exceto em alguns episódios de Tom e Jerry). A gente podia ter a sorte de estar num desenho de super-heróis: quem sabe teríamos super-poderes.

Mas não estamos. Vivemos nessa vida crua crua crua que dói. E arde a pele, e arde o coração. A gente sofre com coisas que sabemos que no futuro não vão mais nos doer, mas mesmo assim nos dói, porque saber que passa não adianta em nada. Parece que o saber da mente é diferente do saber do coração. E nos dói. Vem alguém próximo e tenta nos falar alguma palavra bonita, alguma coisa que reconforte, e, por mais ridículo que pareça, realmento contamos com que essa palavra faça a diferença: a nos provocar uma epifania responsável por mudar nossa visão dos fatos, que será o nosso ponto de virada a nos fazer refletir e achar uma solução para nosso problema. Porém não é assim que funciona pois as coisas só mudam quando a gente quer, na hora em que a gente quer, da maneira que a gente quer: independente de uma palavra na hora certa. Porque a hora certa é a nossa, é a que nós próprios criamos. Às vezes, as pessoas repetem a mesma mensagem diversas vezes, contudo só pela décima vez é que entra no nosso coração. Não porque as nove mensagens anteriores foram inefetivas, mas porque precisamos de nove tempos para nos quedar em paz.

A gente tem um tempo, cada um tem um tempo. Tem o tempo de negar, de lamentar, de chorar, de se fazer culpado, de culpar o outro. Os tempos vão passando: gradativamente um tempo passa e dá lugar a outro maior - o Tempo, - e assim nós mesmos nos substituímos. O Eu velho amadurece e torna-se Eu novo. A alma troca de pele o tempo todo, toda a hora, apesar de a essência ser a mesma. A cobra troca de pele vez em quando, mas, mesmo com peles diferentes, será sempre cobra. É o que ocorre com nossa alma: muda de temps en temps, mas será sempre nossa Alma.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Nhã

Acabou
 
Fui para a cAMA e você não estava lá.
E nem amanhã
Nem nAMAnhã
Nem AMAnhã
Nem AMA nhã...

domingo, 3 de outubro de 2010

Do texto escrito

Talvez a parte mais legal da escrita seja que as palavras têm, por essência, a mesma voz. E por isso um texto não grita nem faz silêncio, ele só é. Ele é e não tem voz, mas é-lhe concedida uma no momento em que o leitor junta as palavras e abstrai o sentido. A escrita, por ela mesma, é muda - dependendo da subjetividade de quem lê para poder existir e ter uma voz para falar.

Não dá para diferenciar um texto escrito por alguém expansivo de alguém tímido. As duas vozes são as mesmas. O que diferencia um texto do outro é a maneira com que o escritor articula os argumentos, as orações, a sonoridade. Se você conhece a pessoa que escreve, aí, sim (e até consegue ouvir a voz dela falando enquanto lê). Mas se desconhece, é impossível. Tem gente tímida que escreve muito bem, porém ao tentarmos transpor a voz da pessoa falando o que escreveu, em voz sonora, não dá. Porque é como tentar unir dois universos diferentes, duas realidades que não se misturam. Você que me lê tem muitas ideias de mim (que sou inteligente, burro, pseudointelectual, culto, arrogante, expansivo - ou quem sabe tímido - etc). A maior parte dessas impressões foram construídas a partir de pura observação. Dos meus gestos, das minhas falas, talvez do meu texto. Só que todas elas podem estar erradas, visto que a observação por si só não comprova nada. É preciso compartilhar experiências junto para que se possa começar a formular uma opinião. Sendo que isso é pouco, porque todos somos complexos demais para que possamos ser resumidos e rotulados a partir de pura observação e poucas cenas convividas. É muito fácil conjugar uma primeira opinião e deixá-la ali, pronta como resposta, porque não é preciso mais questionar-se sobre ela, adentrar no desconhecido mundo do qual o outro faz parte. O texto escrito é traço do escritor, quem sabe índice de um objeto que esteve dentro dele em alguma hora. Mas não passa disso.

O escritor é texto escrito, mas o texto escrito não é escritor. Então, se uma pessoa tímida escreve uma lauda carregada de argumentos, com defesas fortes, é certo dizer que ela realmente possui isso dentro de si, apesar de não conseguir transpor ao vivo: somente no texto. O estilo do texto é parte do estilo da pessoa real e factual. Digo isso porque acredito que haja uma divisão entre o escritor e a pessoa. Ao tomar a forma de escritor, a pessoa deixa aflorar parte dela que não havia espaço até então. Ou ao menos deixa que essa parte tome voz.

Não que não haja textos mais fortes do que outros, textos com mais vida. O que eu quero dizer é que os textos, por eles mesmos, têm capacidade de falar da mesma maneira e atingir o leitor da mesma maneira. A voz do escritor expansivo é a mesma do escritor tímido. Ambos estão em pé de igualdade, e talvez seja por isso que muita gente tímida escreva. Para ter a mesma voz que todo mundo. Para fazer-se ouvir.

(Trecho de um conto do Caio F. Abreu:

E pensarias que o que faz nascer as perguntas não é uma necessidade de conhecimento, mas de ser conhecido. Porque tu não saberias se a moça sentia tua presença. Falando, ouvindo a tua própria voz, solta na praça, terias a certeza de que a moça te ouvia.

No fundo, no fundo, acho que escrever é uma coisa meio sombria, porque a gente nunca pode ter certeza de que alguém nos ouve.)

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Ato subversivo

Nietszche disse que os homens deveriam viver a vida como se tivéssemos de vivê-la novamente e eternamente. Mas esse eterno retorno, que é a expressão que ele mesmo usa, poderia um dia ser quebrado? Porque dizer que viveríamos e reviveríamos da mesma maneira pressupõe que, ou somos seres muito, muito burros, ou há uma existência superior que comanda o nosso retorno. Se for a segunda opção, por que faria com que vivêssemos o já vivido? O quanto de voyeurismo há nisso? Não sei qual das opções seria mais provável de acontecer, até porque há um quê de fé nisso, o que faz enveredar para um caminho que não é o que quero.

De qualquer jeito, num dia, numa hora, decerto, aparecia algum ser dotado de subversão (admito que nunca usava essa palavra até conhecer meu colega SUBVERSIVO Luciano) habilitado a criar uma pequeníssima situação diferente das que ocorriam em todas as vidas anteriores. Algo como deixar outra pessoa pegar um táxi na chuva ou até mesmo bater no próprio pai. Talvez toda a humanidade dependesse desse ato revolucionário: um ato bom ensejaria muitos outros atos bons, assim como um ato ruim causaria outros tantos similares.

Seria um ato único, singelo. Porém, antes de tudo, primário e subversivo, que definiria o rumo das outras mudanças subsequentes, catalisando situações que talvez nunca acontecessem.

Mas, antes de tudo, seria um ato subversivo.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Verão de 40º

Antes de dormir, comecei a pensar sobre fenilcetonúria e caí no câncer. E se eu tivesse câncer? E se fosse câncer tomando todo o corpo, assim, o médico me diz que eu tenho mais ou menos um ano de vida, que posso tentar alguns procedimentos invasivos, no entanto de nada vai adiantar, que até pode passar o número de uma psicóloga transpessoal para eu ir me tratar de uma maneira diferente (é um estilo novo, tem algo de física quântica...), mas mesmo assim meus dias estão contados, ele fala: não exatamente com estas palavras porém de um jeito mais sutil, tudo muito cuidado, muito delicado. Contudo não me faz diferença porque notícias assim são tão afiadas que o eufemismo se faz cortina, tentando esconder algo como uma

Caverna escura escura escura aquilo
Que a gente chama Morte
Que faz um grande corte na tua vida
(E a gente finge não temer)
E procura uma saída
E se faz de louco
Acaba por cair em manicômio

(Devo dizer que prefiro a solidão.)

E qual seria a minha reação? Chorar e chorar e chorar porque quando a gente chora a alma se lava. E chorar mais um pouco. Toda aquela conversa fiada de pensar no futuro que não vai mais ser, no presente que já é e logo passa. (E chorar e chorar e chorar). Eu me conheço bem, é certo que cairia em depressão. Meus amigos tentariam me animar, mas não saberiam como, pensariam
eu não sei o que fazer, mas ele precisa parar de chorar
eu não sei o que falar, mas ele precisa de um ombro
eu não sei o que pensar, mas minha mão tem que se mostrar
cria vergonha e vê se te levanta

Como catapora a notícia haveria de se espalhar, e todos que comigo não têm intimidade se lamentariam. Alguns pensariam o que eu deveria estar passando, tentariam se colocar no meu lugar (para falar a verdade, são sempre esses que fazem a diferença pela VIDA). Outros falariam "baah, que merda, sério?". E que merda, meu caro, vai pro inferno você também. Porque a gente não conhece os outros e faz pré-julgamentos e julga como delegado prepotente e age com base nas pré-concepções, quando vê nem falamos com a pessoa porque já a detestamos (pois sim, e eu faço isso também, porém tento me podar).

Acho que também teria reações infantis, porque não se pode ignorar que tenho 17 anos que é: o que acho que se esquecem. (E choraria choraria).

E choraria
Porque de toda a porcaria
A gente pensa ser melhor
Diz pros outros que está bem mas
No fundo no fundo
As estranhas se flagelam.
Pior é

Dizer que está mal e sente dor
Só para ganhar atenção
E manejar um sorriso
A seu próprio favor

A gente é tudo podre mesmo.

Primeiro pensei que aproveitaria meu pouco tempo de vida cursando Ciências Sociais na PUCRS à noite, mas depois voltei atrás porque acho que não passaria meu último ano enlouquecendo com duas faculdades. Depois projetei que me levantaria da cama podre de fedida com minhas formas já nela moldadas. Talvez viajasse. Gritaria mais, sorriria mais. E procurasse todos os dias aquele calafrio que sinto quando estou sozinho sozinho e ouço Yann Tiersen ou Perfume Genius no meu mp4, e algo toma o meu corpo de maneira que não me reconheço e pareço ver-me de cima e sinto que não sou eu eu eu: às vezes choro e agradeço pela vida.

Acho que viajaria. Me declararia a todos que eu já amei, e se não amei ninguém, passaria a amar todos porque quando a gente está prestes a morrer tudo é efêmero, tudo é tão simples, somos todos mortais com carne e alma, nossa: carne que não serve para nada além de fazer com que nossos líquidos não escorram pelos ralos, eles até deveriam, cair no esgoto sujo sujo sujo de Porto Alegre, boiar nas ruas durante uma enchente e entrar na casa de alguma família pobre que não tem o que comer, eu diria que me sorvessem até que eu virasse eles, pura união virando depois mijo amarelo, se bobear misturado com cachaça.

Antes de definhar até os ossos, antes de fazer com que minha mãe acampasse ao lado do meu leito, antes...
Antes de fazer meu pai ficar careca, antes...
De deixar meu irmão solidário
Antes de causar dor nos meus amigos...
Eu me atiro no Guaíba.
E não morro:
Viro água que passa a evaporar
(O tempo aquece)
E viro chuva.

Refresco teu corpo no verão de 40º.

sábado, 18 de setembro de 2010

Era frio, muito frio

Era frio, muito frio

Saí desnorteado camba
Leando pela rua
A alma meio crua de viver
Virgem de amar
De causar dor
Um homem bêbado me chamou de bicha
Disse que ia me foder
Até que não andasse
Não ouvi direito, tentava escutar algo que falava mais baixo
Mais baixo
Bem
baixinho

Quase ouvindo

(Meus passos cegos me levaram ao teu coração sem voz.)

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Porém e outros poemas

 Talvez se

A gente é um ser infeliz
Essa coisa de dizer que sente
Uma energia, uma coisa dentro
A gente mente e faz de conta
Que ouve o outro mas na verdade
Ouve o próprio corpo
O som percorrendo os ossos e
Voltando para si.

Humano é o ser mais egoísta que vai existir por aí.

Porém

às vezes penso que hoje mesmo
é a hora da minha hora
porém eu sonho e oh, meu deus,
é tão amanhã

Que todo mundo sabe

Alabama é uma palavra engraçada
Lembra lhama aquele
Bicho que todo mundo sabe que existe
Mas ninguém viu

Como teu filho, aquele que amanhã há de nascer.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

É melhor que

Era noite, e eu estava no ônibus voltando para casa, pensando sobre como se consegue não pensar em nada, já que o consciente pode até fingir que está quieto, mas o inconsciente não, está: sempre ligado digo: a mente é consciente+inconsciente, então é impossível ficar sem pensar, acho. O ônibus passou pelo parada do shopping Praia de Belas, e em seguida duas gurias levantaram-se e falaram para o cobrador:
moço
não, por
favor. a gente parou na parada errada, tem
como abrir a porta, 
rapidinho,
senão a gente fica perdida.

O cobrador disse que não, que a próxima parada era perto de sei-lá-qual-prédio-da-Justiça porém: essa parada fica a quatro quadras do shopping, e naquele momento estavam duas gurias loiras daquelas em que a gente imagina quando pensa em guria estuprada. Eram duas gurias lindas, mas não eram estupradas. Uma pediu:
moooooço
por favor. agora é sinal
vermelho. o shopping é lá longe
e tá tão escuro. 
é escuro e perigoso para a gente.

O moço ficou meio indeciso, coçou a nuca e falou queque chose para si. Depois respondeu que não, meio que se desculpando, que não, vai que passa um motoqueiro e atropela vocês, a culpa fica em mim.

Ambas disseram aaaaaah e desceram na parada que era longe. O cobrador ainda as seguiu com o olhar, acho que cuidando. Porém isso fez-me pensar se todo esse desenrolar foi ético ou não digo: qual a porção de ética que havia nessa situação, se é que é ética que se passa nisso. O cobrador recebe ordens de que não pode deixar ninguém sair se não for na parada. Mas era noite, e poderia acontecer algo com as gurias loiras. Ninguém saberia que ele teria deixado-as sair antes, pois só havia eu no ônibus. Ele: 
podia abrir a porta. Ele devia? D-e-v-e-r-i-a? Essas coisas que a gente faz quando ninguém nos olha porque sabemos que ninguém acusará. As garotas não deveriam pedir o que pediram visto que é certo que sabiam que o homem burlaria regras. Contudo o que é tudo isso senão uma situação em que há as regras do sistema, um roteiro em que todos devem atuar, porém de repente ficam em dúvida em relação ao que devem fazer e seguir? Tudo culpa de duas passageiras que colocaram dúvidas na cabeça de um homem que provavelmente procura não as ter.

Era um ônibus e gurias loiras não-estupradas e um pobre cobrador de boné preto, mas também era o sistema com suas regras planejadas para ser sempre seguidas, para ser sempre cumpridas. Quem é que ousa questionar? 

Melhor que sejam estupradas.

domingo, 5 de setembro de 2010

Não dá pra ser vegano

Hoje pensar me tira carne
A pele fraca
O músculo sangrento
A faca não tem fio para cortar

As pessoas dizem que o que a gente precisa da vida é ser feliz, mas não pode ser isso. Porque muitos de nós somos e nem por isso encerramos nossa jornada nem por isso: quebramos nossa busca. Mas é essa busca que talvez nos mova e que se porta com sede insaciável pois me parece deveras alienado delimitar nossos objetivos a: bom profissional, família feliz, viagens e um bom apartamento. David Elkind, um teórico e psicólogo estadounidense, no livro "Infância e Sociedade", reparte nossa vida em oito estágios. O último é Integridade X Desespero, em que o idoso avalia suas ações até o seu "agora" e pesa se tudo valeu a pena. Se sim, o senso de integridade sobrepõe-se ao do desespero. Porém o que acontece se o desespero vence? O idoso possui dois caminhos sendo: a) entrar em um estado depressivo e lamentar ou b) tentar recompensar com ações benévolas que deem sentido à sua vida (isso não é Elkind que fala, mas eu, na minha humilde condição de... ninguém, que observa). 

Minha vó está prestes a morrer, e eu pensei em perguntar se ela acha que valeu a pena. Mas não vou fazer isso, porque corro o risco de que ela tenha mais desespero do que integridade. A verdade é que todos somos felizes até que questionemos essa felicidade. Fazemos tudo para dar um sentido que nos motive a acordar todos os dias e colocar a roupa e tomar café e sair de casa. Só que qualquer motivo que seja, é egoísta, visto que até podemos tentar-nos enganar dizendo, eu preciso sair de casa para trabalhar e sustentar minha família mas: se a família não precisasse de sustento, não haveria um porquê de levantar-se, e seria preciso buscar outro motivo que: exigiria uma reflexão mais apurada. Porém a reflexão cansa, a reflexão nos deixa infelizes, já que sempre vemos que algo nos falta. Talvez seja para isso que sirva a reflexão para: acharmos o nosso vazio existencial e ir atrás buscar qualquer outra coisa que nos preencha.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Vida

vivendo
e
aprendendo
a
viver
sem
saber
o outro lado
(tá tudo meio
vago)
vou
andando
e fico meio
claro
perante
o escuro

acho que é o futuro

domingo, 29 de agosto de 2010

terça-feira, 24 de agosto de 2010

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Apenas umas lascas pelo canto


Já eram quase seis horas da tardinha e eu saí de lá. Andei pelo Centro, e aquelas pessoas sem rosto olharam pra mim: eram todas pessoas com rosto mas agora tento me lembrar e não consigo. Quando sonho, as pessoas que vejo são aquelas que vi na rua ao longo do dia, posto que o inconsciente não inventa faces, apenas nos apresenta as já vistas. Acordado, não vejo aqueles rostos, mas sonhando, sim. Queria sonhar acordado de: verdade, não na expressão que se usa, porque veria de novo os rostos que não vi e então imaginaria uma identidade para cada um. Andei pelo Centro e quando me dei conta,
                estava no Cais do Porto. Pensei em sentar na beiradinha e balançar meus pés, porém lembrei que agora colocaram grades e só dá para ficar próximo a elas. Assim a gente fica longe d'água e não corre risco, e assim a gente fica infeliz. Cheguei naquele corredor gigantesco e vi um navio que para mim era grande, não sei se para outros também, talvez: outros navios riam da pequeneza dele. De qualquer jeito era navio. Tinha duas cores, dividas por uma linha, a de: baixo era vermelha, e a de cima, azul-escura. Uma comporta estava aberta, e dali caíam litros e litros de água, que caíam também em cima de duas cordas grossas que o amarravam ao cais. Em sua frente, havia um barquinho pequeno pequeno, com alguns homens fazendo algo que sei lá. Um estivador passou, e eu: perguntei se poderia subir no navio, só pra ver como é, nem fico muito tempo, até fico com o senhor... porém ele disse que só quem trabalhava poderia subir. Fui embora chateado, chutando uma pedra que estava por ali. Saí do Cais
                                com aquele negócio meio quadrado meio triângulo nos pés, que girava e girava pronde eu quisesse que fosse. Numa hora, dei um chute forte, e se
Lascou.
A pedra se despedaçou.
foi aí que percebi que existem diferentes tipos de pedras por aí. Pedras perdem pedaços, mas é só para que fiquem mais redondas e possam deslizar melhor. Algumas não gostam de perder lascas, mesmo sabendo que depois ficam mais redondas e giram mais fácil. Estas pedras são as que mais atrasam o jogo, porque talvez nunca mudem de opinião talvez: sejam sempre não-redondas. Vez em quando, todo o tipo de pedra passa por poças d’água. Algumas: reclamam por terem se molhado, e outras ficam felizes por se refrescar. Algumas pedras têm o azar de rolarem em merda. Essas são as mais azaradas mas: também sortudas, porque depois da merda podem aprender a reconhecer como é bom estarem limpinhas. Pena que algumas pedras ficam sujas mesmo limpas e pena: que algumas pedras fiquem sempre na merda, por escolha própria e sem saber. Eu
                               Sou uma pedra, mas não sei
Por quem eu sou chutado. Não sei
                               Se quero ser cuidado.
                               Hoje perdi uma lasca pela rua, e
                               Me doeu muito.
                               Mas agora estou mais redondo,
                               E talvez um pouco mais tratado.
                              
Chutei a pedra por mais de oito quadras, e ela não ficou redonda. Acho que se ficasse chutando por um tempo infinito, ela teria ficado. 
Acho que se viver até o infinito, dá para deslizar mais fácil.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Mulheres

Marina Colasanti   

    Às seis da tarde
    as mulheres choravam
    no banheiro

    Não choravam por isso
    ou por aquilo
    choravam porque o pranto subia
    garganta acima
    mesmo se os filhos cresciam
    com boa saúde
    se havia comida no fogo
    e se o marido lhes dava
    do bom e do melhor
    choravam porque no céu
    além do basculante
    o dia se punha
    porque uma ânsia
    uma dor
    uma gastura
    era só o que sobrava
    dos seus sonhos.
    Agora
    às seis da tarde
    as mulheres regressam do trabalho
    o dia se põe
    os filhos crescem
    o fogo espera
    e elas não podem
    não querem
    chorar na condução.


Para que minha vó fique bem.