terça-feira, 31 de maio de 2011

Vazio

Acordou sem se lembrar de nada. O vazio de quando o pensamento liga para só então as lembranças palidamente tomarem o coração instalou-se de tal maneira que por ali ficou; não tinha nome, idade e nem mesmo a façanha de há muitos anos ter enfrentado o medo do escuro e vencido. O fato de desconhecer a si mesmo lhe causava um estranhamento alheio ao próprio fato de estranhar tudo o que via. Ninguém pode se desconhecer e esperar saber dos outros, pensou, no aguardo de que viessem imediatamente trazer-lhe explicações e saciar sua sede de memória que buscava, buscava sem encontrar, sem saber de si dada a ausência de experiências passadas.

A janela com cortinas de blecaute recortava ainda mais o seu mundo agora pequeno, fazendo-lhe exigir neste exato momento que venha alguém até este quarto me explicar o que ocorre pois ninguém me perguntou se quero ficar aqui, não emiti qualquer autorização para que introduzissem em meu braço uma agulha fina que é tão fina quanto o menor fio de razão que procuro agarrar para não jogar este vaso de flores pela janela junto com todo este teatro que me envolve, alguém venha aqui agora! E um jovem de jaleco branco com a face da experiência entrou pelo quarto, pedindo ao paciente que se acalmasse. Você pode me dizer seu nome?, perguntou serenamente o intruso. A presença do médico (ou enfermeiro? tão jovem...) impôs-lhe uma vontade de conter o desespero, como quem esconde a ponta para fora do guardachuva rasgado ao encontrar algum conhecido pela rua. "Não sei", respondeu o desnomeado. Estava sem nome, e, ao invés de deter uma infinita liberdade, tinha a sensação de estar preso em uma jaula minúscula; detendo o contato com a realidade mas sem que pudesse interagir. Estas cores, você reconhece? Azul vermelho amarelo afirmou com pressa, na esperança de que o reconhecimento provasse ao outro que deitado na cama se postava alguém em sã consciência, posto que sem identidade.

Outras perguntas se seguiram. A cada oportunidade, respondia mais do que lhe era pedido, a fim de que com a descrição de trivialidades viesse-lhe a complexidade do passado. Cada resposta completa continha a missão de, mais do que convencer ao inquisidor, convencer ao próprio homem de que, se conseguia acertar as cores e formas geométricas, conseguiria olhar para si mesmo e se saber.

Em meio à hesitação de dois segundos do jovem de avental, entrecortou: quem sou eu? Após ouvir a própria pergunta é que percebeu como soava absurda. Entretanto, não havia outra questão a ser formulada, visto esta ser a grande dúvida que lhe queimava dentro. Um homem de mãos peludas que não se lembrava dos primeiros pelos, de unhas cortadas sem saber quando as aparou, macho sem conhecer uma fêmea. A expectativa recaía no desconhecido à sua frente que, pelo que sabia, nunca avistara, mas em cujas palavras depositava todas as esperanças de apaziguamento. O raciocínio perfeitamente normal corroía-lhe as entranhas, dado que a saúde em dia lhe permitia visualizar todo campo – e, consigo, o vazio – que o branco na memória proporcionava. A angústia maior já descobrira: não poder configurar seus próximos passos por não se lembrar de como fazia antes.

- Há alguns pertences que podem lhe ajudar – afirmou o homem de avental, com a voz da verdade. Poderia falar em uma língua totalmente desconhecida; mesmo assim, qualquer um compreenderia que sua autoridade era inquestionável. Ainda assim, avisou que voltaria.

Saiu da sala e nunca mais voltou. 

O homem sem memória morreu e, mais triste do que não ter feito falta para ninguém, não fez falta para si mesmo. Seu nome era Susano.

domingo, 22 de maio de 2011

Tudo é tão feroz e doentio

Ninguém sabe o que é ter câncer.

Você não pode deter a iminente tomada de pânico após ouvir o diagnóstico. A morte é algo que provém do irracional, então todas as palavras que com ela caminham trazem a nós a perda de controle, além da incerteza sobre nossa real relevância neste mundo. Foi absolutamente detestável a aparente comoção do médico, escondendo um enraizado desleixo, ao mostrar-me os exames. Crescimento de células jovens, é preciso de um tratamento imediato, comunique a sua família, por favor, você precisará de apoio, não será fácil a partir de agora, é uma doença que costuma acometer os novos tanto mais quanto os velhos. Como foi detestável a sua autoridade medicinal, asséptica; de bigode branco me encarando jovem; quantas mortes ele já testemunhou? e deve estar matutando se durarei ou não, como hei de ser sem meus cabelos, se capaz de extrair um profundo sentido com a aproximação da Bela.

Mesas de vidro sempre me deixam deveras nervoso, toda a exposição das pernas em uma sedução fantástica, a maneira de cruzá-las e colocar a postura, o modo de apresentar-se perante um desconhecido, encaixando braços, as mãos juntas ou uma em cada joelho. Ao saber-me com câncer, detestei ainda mais a minha desnudação para um velho de bigode branco. Ele se tem com o poder, visto que é quem conhece do meu corpo sem nunca o ter visto, sabe da minha postura porque conhece centenas de outras que já passaram por sua sala do nono andar e, mais do que tudo, sabe do meu fim porque sabe da minha vida. Meu corpo me trai e me mostra a um qualquer, ele é um qualquer, doutor asséptico e prepotente, com bigode e avental brancos, a mesa envidrada e a estante de madeira de reflorestamento cheia de livros médicos e do Moacyr Scliar, provavelmente alguém em quem se espelhou enquanto estudante. Naquele consultório em uma tarde chuvosa de maio eu pude ter nojo do mundo, porém muito mais do doutor à minha frente: na cadeira dura eu fazia o papel de um doente terminal. Só isso que eu era, todo o resto atirado às favas; jovem, universitário, tenho pai e mãe e um irmão do qual nunca fui amigo... eu cheio de amigos que me confortam e me agregam, sentindo o nexo da vida a partir dos meus sentidos que me passam a perna, coitados e infiéis, me traindo e me matando com a multiplicação de células blásticas que pouco a pouco vão me tomando a medula óssea, matando e matando e matando; a partir de agora a morte no cangote.

Vontade de sair dali e me atirar no chão da sala e chorar até ficar em uma pose miserável, uma mão sustentando o corpo e a outra apertando o peito, o pranto tão grande que o choro mal sai, a boca só abre e resta o silêncio da passividade em relação a tudo o que abraça, cachorros que me lambem e fazem ruídos que lembram miados e eu juro que tudo o que queria era voltar ao momento em que abria uma barrinha de chocolate antes de entrar no consultório branco, asséptico, alegre ao degustar a gordura e o cacau na embalagem colorida da vaquinha que dá leite, tudo é tão sagaz e doentio, efêmera a minha fala que, não posso postergar, tenho certeza de que não ficará, minha existência fadada à memória dos outros. Nunca gostei de depender de alguém além de mim mesmo e agora é comigo que não posso contar. Será que o cobrador do ônibus que pego dará falta por mim quando eu morrer? Talvez devesse dar um presente para que se rememore, é egoísta, sim, mas o que é a natureza, não exijo que se lembre de minha pessoa, meus traços e maneira com que punha a cabeça na janela, só que rememore daqui a um, cinco anos, que um jovem desconhecido um dia deu-me uma barra de chocolate e foi tão educado, como há pessoas boas no mundo. Que ele ainda mantenha esperança no mundo porque a minha vai fadar e fadar com a existência.

Acho que não duro muito, o tom de voz usado pelo doutor não me deu muita esperança. Espero pelo menos que isso não seja fruto de uma personalidade doentia que se agrada em testar maneiras com que desconhecidos recepcionam a morte, talvez ele tenha um caderninho com nomes daqueles que sobreviveram, quem há de saber? Tantas vezes que disse a a palavra câncer mas nunca soube efetivamente o que é, jamais experimentou a degradação da carne e do ser, a angústia da espera, da certeza de algo que chegará mas não se sabe quando. Quando pequeno, impacientavam-me muito os dias anteriores à viagem de férias, qual a praia a ser escolhida, a ansiedade em fazer a mala e escolher o que levar para o outro lugar. Hoje, mais velho e com mais paciência, fico outra vez à espera da viagem sem saber o que colocar na mala. Angústia que raiva e dilacera, como eu queria voltar a degustar o chocolate da mesma maneira com que degustava dias atrás...

Para o Clube da Escrita. O tema era chocolate.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Engraçado o fato de até ter lido isso a primeira palavra já fadou

Claro, claro, então vi-me hoje lendo um texto para a aula de Teorias da Comunicação, dizia lá pelas tantas que o advento da escrita possibilitou a formação de uma consciência histórica, no momento em que se toma a lógica de que é preciso ir até o fim da linha para entender sobre o que se fala, e uma linha é um conjunto de pontos, cada ponto trazendo um sentido consigo, vários pontos trazendo um grande sentido à espera (ou não) de compreensão, é preciso de um afastamento prévio para compreender o texto, tudo isso afetando nosso modo de absorver o mundo, as ações somente captadas se apreendidos os conteúdos em linha horizontal, a linha cronológica, o tempo, fielmente chegamos a ele, o rei, o querido, como gostamos de você, ó, apegados que somos, escravizados como formiguinhas debaixo da terra loucas para encontrar a superfície porém sem saber onde fica, alguém sabe da luz da luz, alguém nos livre deste teto baixo e escuro, trabalhamos no verão para proteção no inverno, o frio que nunca chega contudo parece sempre perto, alguns metrinhos de distância, alguns minutinhos para chegar. Minutos ou horas? Se adotarmos o pensamento linear de Descartes então faltam horas e minutos e talvez até dias e dias, o que fazer para esperar até lá, quem sabe ler um livro? Quem sabe de nossa consciência, adotarmos uma maneira de pensar louca de maneira circular como um looping de montanharrussa em que você gira e gira e gira, como se estivesse bêbado ou alto, pulando por uma praça às três horas, gritando aos céus a beleza das ruas, como tudo é tão bonito e delicado, de uma destreza ímpar, aquela árvore foi colocada com uma colher, tão encaixada que está, a estátua mijada pelos arruaceiros que se fosse em outra época seriam punks, mas hoje já não são, ninguém sabe o que são punks, o que é este estilo, será então. Queridos os alternativos e hispters, sempre à frente das pessoas em redor, sempre à frente do tempo medido pela nossa consciência histórica criada pela escrita, o que é o tempo mesmo?

Descobri que escrevo poesia porque não se mostra necessário colocar os limites temporais naquilo que virão: palavras e sentidos, semiose infiniiita que se faz, na poesia não há rédeas, poesia se desmancha na janela e adota a forma que qualquer quiser, fácil assim escrever e não precisar se preocupar com ontem e hoje e amanhã, assim todos poetizamos, o tempo não existe, tudo foi, é e será, mas não, não, poderia existir algum modo verbal que não envolvesse passado nem presente nem futuro, talvez. Sonhos também são divididos nesses três, mas não é uma tristeza? Ontem terminei de ler um livro do João Gilberto Noll em que ele conseguia quebrar qualquer noção espaço-temporal, não de uma maneira confusa como isso que escrevo, era confuso também, mas não tanto, é que ele já é tão experiente e eu sou apenas um jovem que há pouco fez 18 anos e penso no futuro que nem existe; engraçado pensar no que não existe, transportar-se para outra realidade que não pode ser medida pelo tempo, por que seria futuro, então? Talvez fosse legal se eu descobrisse uma maneira de fugir do tempo através da escrita, claro que não de maneira assim iletrada, vontade de quebrar o tempo sem que soasse tudo uma verborragia, acho que o tempo não pensa porque se pensasse se autoimplodiria. Vontade de implodir o tempo e libertar a humanidade, pena que assim desapareceria a escrita ou a forma como nós nos conhecemos.

Engraçado o fato de que só temos identidade ao pensarmo-nos a partir do tempo.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Amor de mãe

Minha mãe me ensinou pequeno que sempre aparasse as unhas
Porque um dia chegaria meu amor
E eu não quereria arranhá-lo e que fugisse
De medo do corte das minhas mãos.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Foi tudo em uma sala pequena, porém ajeitadinha


Pedi que me contasse sua história. Não me recordo exatamente como o fiz, porque não lhe demandaria isso desta maneira, posto que quisesse muito. O fato é que pedi que me fizesse seu diário, e ela aceitou. Antes, perguntou-me se me incomodava o cigarro, o cheiro, os gestos, você sabe como é, já estou farta de ouvir que um dia morrerei de câncer, mas o câncer não existe por agora, o que comanda é o vício, e este sim existe, você se incomoda com a possibilidade do câncer? Não muito, respondi. O vício é uma coisa engraçada, acrescentou enquanto exalava a fumaça, é como cinema, se o filme é bom você senta e só percebe que está imerso na coisa quando já chegou na parte em que se regojiza por antecipadamente ter descoberto o final. Vícios bons são aqueles em que você não sabe qual o final do filme – e riu e descruzou as pernas e se afetou como se entendesse do assunto. Naquele momento, factualmente entendia, pois era a única a saber de assuntos. Eu era só papel e escuta.

Papel e escuta enquanto ouvia ela dizer que amou mais do que todas as pessoas que já conhecera. Prostituta de coração grande, salientou, muito orgulhosa de si. Falou-me sobre uma de suas paixões: um quarentão charmoso e deveras desiludido. Com o quê?, indaguei. Com a morte e com a vida. “Rejeitou-me pela doença”. Não me respondeu efetivamente qual enfermidade, mas descobri tempos depois ser AIDS. Tempos depois em que ela morreu. “Me amou por um bom tempo. Mais de cinco anos, sem que a esposa soubesse. Foi meu amor mais duradouro”. Seu amor mais louro, observou entre dentes, estendendo a mão e olhando para as unhas. Ela era um pouco arrogante, mas não a ponto de incomodar. Assemelhava-se àquelas pessoas que detêm um ar de superioridade, porém bastante divertido. De uma arrogância que não pretende intimidar, mas apenas mostrar o queixo, a nuca e os cabelos nos gestos de seu corpo. Tinha um belo corpo.

- Você sabe o que é amor? – perguntou mudando o tom da conversa. Sabia que ali eu era escuta, assim como sabia que a situação era nada mais do que um monólogo, uma complexa verborragia entre ela e Ela.

- Talvez. Algo maior do que a carne...? – respondi de maneira genérica, procurando não passar este tom.

Não. Amor é transar comigo, respondeu. Você precisa amar a carne para transar com alguém que não conhece. Amar a pulsão sexual, o desejo do gozo e da vontade. Eu sou a encarnação do amor. Eu sou a carne do amor.

A conversa percorreu outros assuntos, que em outra hora tornarei a retomar. O fato é que teceu comentários sobre a vida e sua filosofia. Disse-me muito pouco sobre suas experiências pessoais. Descobri-me um diário de ideias e não de fatos. Por causa disso, ainda me pego em dificuldade de viver, sendo mais fácil só pensar e falar sobre ideais. Falar sobre amores passados.

Hoje me lembrei dela e acordei prostituta. 

E amei como nunca amara antes.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

O código da palavra

Tem gente que não precisa da palavra. Mas eu sim
Eu preciso do signo e do código
Senão não respiro
Preciso da letra e do sentido
Que gosta de vazar
E desaguar em rios de marés tortas...
A palavra é como se fosse um balãozinho
Você enche de ar e ele toma forma
É possível amassá-lo, amarrar uma ponta
À outra. Então vira cachorro
Latindo e perseguindo gatinhos
Teme a agulha, o furo e o fio fino que fia
A agulha da palavra é o grito
Porque gritos dissipam o poder das palavras
No grito todas elas são iguais
Sem qualquer distinção de importância
Não há diferença entre cachorro e galinha
No grito. Ainda mais quando tem o ódio
Que é uma palavra algoz
Mesmo sem grito, o ódio é maligno
Porque nem é preciso falá-lo
Você pensa em ódio e já é todo tomado
Pelo signo e o código.

A palavra não tem lei
Tem acordo. Entre um e o outro.
Homens de lei cedem seu bigode
Mulheres sua fúria
A fúria da mulher é o pior da palavra
Porque parece ter necessidade do grito
E grito sempre esvai a palavra
Dizia meu vozinho que já foi
Lembro de vovó gritando sempre
Porque vovô era surdo e paciente
Vovô e vovó tinham eles mesmos um trato
Só eles se entendiam...

Nunca entendi o código dos dois
Ambos morrerem e não os vi depois.

Morte é uma palavra sem lei
Ela independe de código.