quarta-feira, 1 de agosto de 2012

amigos

Sabrina insiste na ideia de que repetir seguidamente "não" para si sempre dá certo na hora de se convencer. Ou que pensar positivamente é melhor. Primeiro senta ao meu lado na cama e encara a parede com cartazes de xilogravuras vermelhas. Tem o olhar perdido, como se repousasse no passado. E eu, que queria pedir conselhos, fico quieto, visto que a urgência dela em sair de si é maior do que a minha. Calo-me e volto-lhe a atenção: perdido em meu egocentrismo e sofrimento, perguntei-lhe como tem passado nos últimos dias? Mais de uma, duas vezes? Não tenho certeza. Por via das dúvidas, é melhor me certificar.

- Aconteceu alguma coisa nova?

- Não. Nada.

Tudo. E mais um pouco. Sabrina encara os desenhos colados na parede como forma de descansar a vista, porque de fato está com o olhar dentro de si. Em meio ao hermeticismo de costume que ela tem, não faço ideia do que está lhe acontecendo. Como amigo, me resta captar rastros, cheiros de carência, solidão, angústia. Seguidamente me pergunto, ela quer um abraço? Se eu sorrir, ela se conforta? E vou testando o terreno, como um cego com bengala. Ela não diz nada e prefere este desdizer que dá a entender tudo, por conseguinte nada. Com voz de comedido interesse, pergunta-me:

- Aconteceu alguma coisa nova? 

- Não. Nada.

Tudo, mulher. E mais um pouco. Nesta semana morri e renasci diversas vezes, e minha cama me era sagrada como um túmulo. Porém não falo nada, já que a menor palavra proferida será demais em comparação ao que Sabrina me disse até agora. E não quero ser o amigo que suga toda a atenção para si, como um cansativo buraco-negro de festas, que é como chamo as pessoas que, em um grupo social com o qual não têm tanta intimidade, fazem excessivos comentários - muitos deles vazios, descontextualizados ou mesmo dispensáveis. Enquanto minha amiga continua a encarar os círculos vermelhos em um plástico grudado na parede, fico quieto. Morno. Um vulcão querendo queimar todo o meu quarto, minhas cobertas, roupas e fotografias. Mas hoje não é meu dia. Por isso, me indago: e tu, mulher? A quantas anda teu vulcão?

- Não tá com calor, não? - questiono.

- Não... - ela responde, com voz despreocupada.

- Sério? Eu tô.

Levanto e abro a janela. Depois fecho-a novamente e ajeito a cortina. Sabrina me encara e pergunta se quero ir no cinema. Digo que sim e peço que escolha o filme. Após pesquisar na internet, decide-se por um drama italiano. Digo que tudo bem, mas fico pensando: será que está quieta e quer ver um drama porque não consegue expressar as próprias angústias? E precisa ver em imagem aquilo que lhe falta em palavras, como se não pudesse achar as formas onde introduzir as lembranças que fazem com que sinta um aperto? 

Palpitam mais possibilidades: Sabrina está quebrada por dentro e precisa assistir a um filme para se identificar com personagens que a permitam projetar-se para a tela e enfim tomar uma dose de morfina para o sofrimento; Sabrina não aguenta mais pensar em Elis e no toque de Elis e no corpo de Elis e no sorriso de Elis e nem ao menos falar o nome de Elis, então quer ir comigo ao cinema para parar de pensar... em Elis; ou, última e mais improvável das hipóteses, Sabrina quer ir ao cinema. 

- Quer ir ao cinema? - pergunto.

- Como? Sim, fui eu quem chamei, esqueceu? - indaga impaciente.

- Ah, é... - reflito me fazendo de avoado. - E quer ver drama? - completo.

- Afinal, tu tá a fim de ir no cinema ou não? - questiona com um timbre desregrado.

Quero, sim. E vamos apressados para chegar a tempo. No caminho, ensaio algumas conversas, mas Sabrina foge de todas. Deus, ela faz tanto silêncio que às vezes irrita. Mas talvez agora haja um real porquê - se é que precisa de um motivo para ficar quieta. Acho que não, no final das contas. Se me destaco por ser angustiado e falar demais sobre o que me preocupa, minha amiga tem o mesmo nível de ansiedade, porém sem externar sequer um traço. Em um dia qualquer, sentados em um bar, me disse: conheci uma guria legal e tô ficando com ela há um tempo. Quanto tempo? Um mês. E não me disse nada? Tu não perguntou. Puta merda, eu penso, odeio essa resposta. Mais três meses. Acho que tô namorando. De verdade? Acho que sim, a gente tá dormindo uma na casa da outra direto. Elis. Uma garota legal. Daquelas que são extremamente simpáticas com desconhecidos mesmo com a certeza de que jamais vão vê-los outra vez. Uma garota legal. Sabrina perdidamente apaixonada, mas fria como a dizer que está acima da irracionalidade dos apaixonados e de suas besteiras. Sabrina, uma figura tão querida, tão boa e tão arrogante...

- Tá boa essa fileira aí do teu lado, senta.

- Meu, tem um velho aqui. Vamos na outra.

Ultrapassamos um casal, chutamos umas velhas e sentamos com o cuidado da lei do cinema: sempre tente sentar a duas poltronas de distância da pessoa mais próxima. Colocamos os casacos ao lado enquanto aparece a maldita lata da Coca-Cola a mandar desligar os celulares, indicar as saídas de emergência e proibir o fumo. Caralho, nem no cinema a publicidade me deixa em paz. Viro-me para comentar isso e encaro minha amiga. Sabrina chora desenfreadamente, aos prantos, com uma mão nos olhos e a outra no coração. Estico-me para que em seguida ela se recolha em meu abraço. Sabrina querida, protegida no escuro. 


*

Tudo isso como a provar que, quando os sentimentos não acham as sólidas palavras certas para se soltar, uma hora viram água e estouram todas as barragens.

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