domingo, 22 de maio de 2011

Tudo é tão feroz e doentio

Ninguém sabe o que é ter câncer.

Você não pode deter a iminente tomada de pânico após ouvir o diagnóstico. A morte é algo que provém do irracional, então todas as palavras que com ela caminham trazem a nós a perda de controle, além da incerteza sobre nossa real relevância neste mundo. Foi absolutamente detestável a aparente comoção do médico, escondendo um enraizado desleixo, ao mostrar-me os exames. Crescimento de células jovens, é preciso de um tratamento imediato, comunique a sua família, por favor, você precisará de apoio, não será fácil a partir de agora, é uma doença que costuma acometer os novos tanto mais quanto os velhos. Como foi detestável a sua autoridade medicinal, asséptica; de bigode branco me encarando jovem; quantas mortes ele já testemunhou? e deve estar matutando se durarei ou não, como hei de ser sem meus cabelos, se capaz de extrair um profundo sentido com a aproximação da Bela.

Mesas de vidro sempre me deixam deveras nervoso, toda a exposição das pernas em uma sedução fantástica, a maneira de cruzá-las e colocar a postura, o modo de apresentar-se perante um desconhecido, encaixando braços, as mãos juntas ou uma em cada joelho. Ao saber-me com câncer, detestei ainda mais a minha desnudação para um velho de bigode branco. Ele se tem com o poder, visto que é quem conhece do meu corpo sem nunca o ter visto, sabe da minha postura porque conhece centenas de outras que já passaram por sua sala do nono andar e, mais do que tudo, sabe do meu fim porque sabe da minha vida. Meu corpo me trai e me mostra a um qualquer, ele é um qualquer, doutor asséptico e prepotente, com bigode e avental brancos, a mesa envidrada e a estante de madeira de reflorestamento cheia de livros médicos e do Moacyr Scliar, provavelmente alguém em quem se espelhou enquanto estudante. Naquele consultório em uma tarde chuvosa de maio eu pude ter nojo do mundo, porém muito mais do doutor à minha frente: na cadeira dura eu fazia o papel de um doente terminal. Só isso que eu era, todo o resto atirado às favas; jovem, universitário, tenho pai e mãe e um irmão do qual nunca fui amigo... eu cheio de amigos que me confortam e me agregam, sentindo o nexo da vida a partir dos meus sentidos que me passam a perna, coitados e infiéis, me traindo e me matando com a multiplicação de células blásticas que pouco a pouco vão me tomando a medula óssea, matando e matando e matando; a partir de agora a morte no cangote.

Vontade de sair dali e me atirar no chão da sala e chorar até ficar em uma pose miserável, uma mão sustentando o corpo e a outra apertando o peito, o pranto tão grande que o choro mal sai, a boca só abre e resta o silêncio da passividade em relação a tudo o que abraça, cachorros que me lambem e fazem ruídos que lembram miados e eu juro que tudo o que queria era voltar ao momento em que abria uma barrinha de chocolate antes de entrar no consultório branco, asséptico, alegre ao degustar a gordura e o cacau na embalagem colorida da vaquinha que dá leite, tudo é tão sagaz e doentio, efêmera a minha fala que, não posso postergar, tenho certeza de que não ficará, minha existência fadada à memória dos outros. Nunca gostei de depender de alguém além de mim mesmo e agora é comigo que não posso contar. Será que o cobrador do ônibus que pego dará falta por mim quando eu morrer? Talvez devesse dar um presente para que se rememore, é egoísta, sim, mas o que é a natureza, não exijo que se lembre de minha pessoa, meus traços e maneira com que punha a cabeça na janela, só que rememore daqui a um, cinco anos, que um jovem desconhecido um dia deu-me uma barra de chocolate e foi tão educado, como há pessoas boas no mundo. Que ele ainda mantenha esperança no mundo porque a minha vai fadar e fadar com a existência.

Acho que não duro muito, o tom de voz usado pelo doutor não me deu muita esperança. Espero pelo menos que isso não seja fruto de uma personalidade doentia que se agrada em testar maneiras com que desconhecidos recepcionam a morte, talvez ele tenha um caderninho com nomes daqueles que sobreviveram, quem há de saber? Tantas vezes que disse a a palavra câncer mas nunca soube efetivamente o que é, jamais experimentou a degradação da carne e do ser, a angústia da espera, da certeza de algo que chegará mas não se sabe quando. Quando pequeno, impacientavam-me muito os dias anteriores à viagem de férias, qual a praia a ser escolhida, a ansiedade em fazer a mala e escolher o que levar para o outro lugar. Hoje, mais velho e com mais paciência, fico outra vez à espera da viagem sem saber o que colocar na mala. Angústia que raiva e dilacera, como eu queria voltar a degustar o chocolate da mesma maneira com que degustava dias atrás...

Para o Clube da Escrita. O tema era chocolate.

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