domingo, 3 de outubro de 2010

Do texto escrito

Talvez a parte mais legal da escrita seja que as palavras têm, por essência, a mesma voz. E por isso um texto não grita nem faz silêncio, ele só é. Ele é e não tem voz, mas é-lhe concedida uma no momento em que o leitor junta as palavras e abstrai o sentido. A escrita, por ela mesma, é muda - dependendo da subjetividade de quem lê para poder existir e ter uma voz para falar.

Não dá para diferenciar um texto escrito por alguém expansivo de alguém tímido. As duas vozes são as mesmas. O que diferencia um texto do outro é a maneira com que o escritor articula os argumentos, as orações, a sonoridade. Se você conhece a pessoa que escreve, aí, sim (e até consegue ouvir a voz dela falando enquanto lê). Mas se desconhece, é impossível. Tem gente tímida que escreve muito bem, porém ao tentarmos transpor a voz da pessoa falando o que escreveu, em voz sonora, não dá. Porque é como tentar unir dois universos diferentes, duas realidades que não se misturam. Você que me lê tem muitas ideias de mim (que sou inteligente, burro, pseudointelectual, culto, arrogante, expansivo - ou quem sabe tímido - etc). A maior parte dessas impressões foram construídas a partir de pura observação. Dos meus gestos, das minhas falas, talvez do meu texto. Só que todas elas podem estar erradas, visto que a observação por si só não comprova nada. É preciso compartilhar experiências junto para que se possa começar a formular uma opinião. Sendo que isso é pouco, porque todos somos complexos demais para que possamos ser resumidos e rotulados a partir de pura observação e poucas cenas convividas. É muito fácil conjugar uma primeira opinião e deixá-la ali, pronta como resposta, porque não é preciso mais questionar-se sobre ela, adentrar no desconhecido mundo do qual o outro faz parte. O texto escrito é traço do escritor, quem sabe índice de um objeto que esteve dentro dele em alguma hora. Mas não passa disso.

O escritor é texto escrito, mas o texto escrito não é escritor. Então, se uma pessoa tímida escreve uma lauda carregada de argumentos, com defesas fortes, é certo dizer que ela realmente possui isso dentro de si, apesar de não conseguir transpor ao vivo: somente no texto. O estilo do texto é parte do estilo da pessoa real e factual. Digo isso porque acredito que haja uma divisão entre o escritor e a pessoa. Ao tomar a forma de escritor, a pessoa deixa aflorar parte dela que não havia espaço até então. Ou ao menos deixa que essa parte tome voz.

Não que não haja textos mais fortes do que outros, textos com mais vida. O que eu quero dizer é que os textos, por eles mesmos, têm capacidade de falar da mesma maneira e atingir o leitor da mesma maneira. A voz do escritor expansivo é a mesma do escritor tímido. Ambos estão em pé de igualdade, e talvez seja por isso que muita gente tímida escreva. Para ter a mesma voz que todo mundo. Para fazer-se ouvir.

(Trecho de um conto do Caio F. Abreu:

E pensarias que o que faz nascer as perguntas não é uma necessidade de conhecimento, mas de ser conhecido. Porque tu não saberias se a moça sentia tua presença. Falando, ouvindo a tua própria voz, solta na praça, terias a certeza de que a moça te ouvia.

No fundo, no fundo, acho que escrever é uma coisa meio sombria, porque a gente nunca pode ter certeza de que alguém nos ouve.)