terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Ele que não era um herói

Na verdade não se sabe se ele era mágico ou se sua câmera. Nem ele realmente sabia. Não por falta de curiosidade, mas mais por ausência de resposta. O fato é que ambos – ele e a câmera – eram um sucesso. Tudo começou não se sabe como, e também mal sabem como terminou. Porém tudo tem um início, bastando simplesmente ser encontrado. Pessoas não encontram seus inícios; por isso se confundem neste mundo louco.

Contudo o fato é que cada vez em que um casal deixava-se fotografar por ele – e sua câmera -, recebia em suas mãos a melhor foto que poderia existir no mundo. No mundo mesmo, contando todos os 200 e tantos países que há por aí. Nunca nenhum crítico de arte ousara questionar sua genialidade. Todos, em uníssono, veneravam suas fotos de casais. Ele era um retratista de casal, porém não com mero status de retratista. Era o melhor e mais genial fotógrafo da história. Cada foto tirada era considerada a melhor foto tirada do mundo, em todos os quesitos que alguém pode pensar: enquadramento, exposição, conceito, detalhe etc. No início,  

fora árduo obter reconhecimento, não obstante é o que ocorre com fotógrafos. Mas conforme se foram formando filas e filas de casais fazendo poses, acabou por obter fama internacional. Pagavam fortunas para uma fotografia sua que, sabia-se, posteriormente poderia ser vendida por talvez o dobro do preço. Posto que pessoas são da maneira com que todos as conhecem, vez em quando apareciam falsos casais, cujos interesses não eram registrar amor ou paixão; apenas o foco na futura fortuna. O fotógrafo, no entanto, nunca precisou se preocupar: a câmera, talvez por instinto, sabia quando eram falsos os modelos à sua frente, e, automaticamente, a foto saía em negrume. Até hoje, não se sabe se a mágica estava nele ou a câmera.

Estavam em simbiose.

Estava em simbiose:
Os dois.
Densos como nunca se viu,
Nunca há de se ver
Ambos:
Dois que não são dois.
Matemática boba esta,
Um em corpo de dois
Densos
Ambos
Dois
Que não são
Dois
Que são só um.

A algumas cidades de distância, um casal estava sentado no parque. Faziam um piquenique com lanches nem rápidos nem lerdos. Sanduíches, suco pronto, bolo de chocolate e um bombom para dividir juntos. Era sol e um daqueles momentos em que não se está nem extremamente feliz, nem extremamente triste. Somente se está. Os dois no parque só estavam. Contando assim parece que eram infelizes, porém não eram. Apenas eram. Casais não precisam estar felizes o tempo todo para estar felizes. E por isso estavam no parque.

Passaram-se os segundos e ambos morreram sem saber o motivo.

A imprensa não cobriu nada, até porque não fora nada que chamasse a atenção. Contudo, sem muito alarde nem festa, alguns casais passaram a morrer misteriosamente. Legistas tinham explicações simples: ataque do coração, AVC, isquemia cerebral etc. Posto o motivo, ainda eram mortes. Algum observador no mundo – pois sempre há aqueles que juntam as peças – deu-se conta de que os casais mortos algum tempo antes haviam posado para o fotógrafo gênio. Naquele dia, tablóides de todo o mundo fizeram sucesso.

O fotógrafo foi chamado a depor, como principal suspeito das mortes. Ficou preso por uma semana. Mas a lei, que nada sabe sendo cega, perdeu-se. Dois casais modelos morreram enquanto o maldito estava na cadeia. Foi liberado com temores de futuros. Em pouco tempo, viu sua clientela despencar. Casais de todo o mundo cancelavam seus ensaios fotográficos. Agora, ele caía metro a metro num poço fundo, denso, como em câmera lenta. No presente percebia o seu presente, porque contrariando a filosofia, ele percebia o segundo que estava, e não só o que passava. Sobrevivia de alguns ensaios, visto que ainda havia casais que se deixavam fotografar. Uns porque criam na inocência dele, outros porque lhes apetecia a roletarrussa. De qualquer jeito, pessoas são loucas.

Prevendo sua falência e sua iminente derrocada, decidiu averiguar a existência de casais que pudessem estar vivos. Achou sua agenda, ligou para uns, para outros, para quase todos. Mortos mortos mortos. Até que

uma mulher atendeu. De voz hesitante, trêmula e bastante abalada, perguntou quem era. O fotógrafo se identificou procurando alcançar uma voz tenra, e antes de a mulher desligar o telefone, explicou sua situação, disse que,

não sou assassino por favor não sou assassino já sei eu pois ligo apenas para provar minha inocência já que tu bem sabes que estás viva e és prova de que minhas fotos não matam, minha câmera é boa e sempre me protegeu de impostores, por favor, dê-me uma oportunidade de eu mostrar que há ainda casais vivos 

E que o amor ainda vive.

Ela lhe respondeu que estava bem, assim como seu namorado de três anos, mas que o medo lhe impedia de sair de casa:

- Não posso ajudar-te – disse, em seguida colocando o fone no gancho.

O fotógrafo caiu em prantos
Caiu em prantos
As dores que hei de saber
Já não sei mais
Tudo o que eu tive e já não tenho
Pareço não ter mais
Caiu em prantos
O fotógrafo de casais
No chão da sala caiu em prantos em choros em lágrimas no piso gelado

Até que a emoção lhe tomou o chapéu.

Ligou para o próximo número. Um homem atendeu. O fotógrafo explicou calmamente a sua situação e intenção. Talvez por sentir a firmeza do outro, o homem concordou em ajudar. Ao longo do dia, mais casais foram contatados, mais e mais e mais e de repente todos estavam vivos, ali, no brilho de viver. O agora decidido reuniu todos, combinou horário e ponto de encontro. Foram à emissora de TV com maior audiência. Expôs seus dramas, suas lamúrias, eu que fui criado por pais opressores, eu que fui criado sem arte e tive que a tirar do mundo, fotografo com minha fiel que não me abandona, eu que não sei enquadrar, é tudo uma mentira, apenas deixo-me ser enquadrado pelas pessoas com seus sorrisos e alegrias e felicidades. Eu que não sou um herói.

Ele que não era um herói. Levantou-se da amargura e voltou a fazer sucesso. Muitos do povo indagavam-se, mas como, as pessoas são tão burras? E assim arriscar-se a morrer e cair por um piripaque. Um casal, saindo do estúdio do Fotógrafo, foi abordado por um jornalista: “Por que vocês vieram aqui se correm o risco de morrer e acabar com seu relacionamento?”.

Porque todos sabemos que terminaremos
Todos sabemos que um dia morreremos
Nesta vida infiel
A carne é fraca
Todos com vícios de morte
E manias de sofrimento
Todos
Na morte e na vida
Simplicidade que é viver
E a morte um dia há de chegar...

*
Casais foram felizes.

Um comentário:

Dayane Pereira disse...

Cara, eu adorei ler esse texto! Se fosse um filme ganharia melhor roteiro original! RS
Gostei de ler o texto, sua forma de desenvolver e a poesia contida no meio, no momento oportuno.