quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

O Lado Fatal

Eu acabei de ver que essa é a 201ª postagem, e eu realmente queria trazer algum presente pra vocês. Então aqui tá uma das melhores poesias que eu já li na minha vida. É Lado Fatal, da Lya Luft. O marido dela a recém tinha morrido e pelo que contam, era o verdadeiro amor da vida dela. É uma poesia muito, muito bonita, e se vocês lerem até o final, não vão se arrepender. Ela consegue transpor o sentimento que a possuía no momento, sem contar que é uma poesia direta, sem mistificações e rodeios. São essas poesias que me atraem, essas palpáveis, sem mistificações, eu gosto de coisas diretas, quando você mistifica demais você acaba deixando a poesia hermética, e pra que você quer deixar uma leitura hermética? Leitura é pra todos, quanto mais universal, melhor, e quando a poesia é direta, atinge mais o povo. É preciso acabar com a imagem de que a poesia é uma coisa de gay ou do século passado, e, na minha opinião, é por meio de poesia direta e sem rodeios que se chega lá. Enfim, sabe quando você lê algo e depois sente que amadureceu? Pois bem, eu senti isso, e espero que vocês sintam também.

I

Quando meu amado morreu, não pude acreditar:
andei pelo quarto sozinha repetindo baixo:
"Não acredito, não acredito."
Beijei sua boca ainda morna,
acarinhei seu cabelo crespo,
tirei sua pesada aliança de prata com meu nome
e botei no dedo.
Ficou larga demais, mas mesmo assim eu uso.


II
Muita gente veio e se foi.
Olharam, me abraçaram, choraram,
todos com ar de uma incrédula orfandade.


III
Aquele de quem hoje falam e escrevem
(ou aos poucos vão-se esquecendo)
é muito menos do que este, deitado em meu coração,
meu amante e meu menino ainda.
 
IV

Deus
(ou foi a Morte?)
golpeou com sua pesada foice
o coração do meu amado
(não se vê a ferida, mas rasgou o meu também).
Ele abriu os olhos, com ar deslumbrado,
disse bem alto meu nome no quarto do hospital,
e partiu.


Quando se foram também os médicos e suas
[ máquinas inúteis,
ficamos sós: a Morte (ou foi Deus?)
o meu amado e eu.
Enterrei o rosto na curva do seu ombro
como sempre fazia,
disse as palavras de amor que costumávamos trocar.
O silêncio dele era absoluto: seu coração emudecido
e o meu, varados por essa dourada foice.
Por onde vou deixo o rastro de um sangue denso
[e triste
que não estancará jamais.
 
V

Insensato eu estar aqui, e viva.
O rosto dele me contempla
vincado e triste no retrato sobre minha mesa;
em outros, sorri para mim, apaixonado e feliz.
Insensato, isso de sobreviver:
mas cá estou, na aparência inteira.


Vou à janela esperando que ele apareça
e me acene com aquele seu gesto largo e generoso,
que ao acordar esteja ao meu lado
e que ao telefone seja sempre a sua voz.


Sei e não sei que tudo isso é impossível,
que a morte é um abismo sem pontes
(ao menos por algum tempo).


Sobrevivo, mas pela insensatez.


VI
Pensei que estávamos apenas no começo:
a casa mal-e-mal nos alicerces.
Mas provavelmente estava concluída
e eu não sabia.
Tínhamos erguido em nossos poucos anos
as paredes necessárias;
o telhado se inclinava ao jeito certo,
e havia vidraças nas janelas.
(Éramos felizes ali dentro
mesmo com as tempestades de fora.)
Tudo se construiu num lapso tão curto:
até a porta de entrada, por onde ele saiu
casualmente como quem vai comprar jornal.

A porta está apenas encostada
embora pareça alta, dura, intransponível:
do lado de lá, o meu amor vê as maravilhas
que tanto nos intrigavam nesta vida.


VII
Tanto escrevi sobre a morte
em livros e poemas nesses anos:
sempre achei que a entendia um pouco.


Mas agora que ela me dilacerou a vida,
me rasgou o peito,
me levou o amado,
sinto que mal começo a compreender
sua mensagem:
tirando-o de mim, a morte o devolve
para que seja mais meu.


Dentro de mim um quebra-cabeças, e nele
[o meu amado.
Nem Deus o tirará daqui.
 
VIII

O meu amado morreu:
viver sem ele, como dói.
Não tivemos filhos juntos,
nosso passado foi tão breve que era sempre
[presente.
Um dia ele mandou fazer um par de alianças
de pesada prata, parecendo antigas;
gravou apenas nossos nomes, sem data, e disse:
"Somos um só desde sempre."
Ainda não acreditei em sua morte,
e talvez isso me salve por enquanto.
Levantar-me da cama cada dia é um ato heróico,
acender o cigarro, atender o telefone, tomar café.
Mas faço tudo isso:
falo, ando, recebo visitas.
Compro móveis para a casa onde moro sem ele,
imaginando: será que ele vai gostar?


De algum secreto lugar me vem a força
para erguer a xícara, acender o cigarro,
até sorrir quando alguém me diz:
"Você hoje está com a cara ótima",
quando penso se não doeria menos
jogar-me de um décimo-primeiro andar.
 
XIX

Amado meu, agora morto,
postado do lado de lá da fronteira que nos seduzia,
mudo e quedo como se não existisses:
eu sei que existes,
intensamente, ardentemente existes,
feito e desfeito no fogo de um amor maior que
[o nosso
mas que nos abrange.


Amado meu, morto agora e para sempre vivo,
hás de ter ainda o intenso olhar que me entendia,
as curvas amorosas da boca que chamou meu nome,
as belas, inquietas mãos que ardiam nas minhas.
Ajuda-me agora, silencioso que estás,
a suportar a sobrevida
e a decifrar esse alto, intransponível muro que me
[cerca.


X
Nunca tivemos filhos juntos, e ele reclamava:
"Nosso amor merecia um filho ao menos".


Nosso filho é a minha dor de hoje,
é a fulguração que nos deixava tontos,
é o novelo da memória que teço e reteço
nas minhas insônias.


Nosso filho é o meu tempo de agora
para falar do meu amado:
da sua força e sua fragilidade,
da sua indignação e seus prantos,
da sua necessidade de ser amado e aceito
como finalmente deve estar sendo, por inteiro,
na realização de todos os seus vastos desejos.
 
XI

O meu amor enveredou por sua morte
como quem vai a um encontro de amor:
impaciente.
Deixou-me este coração golpeado,
esta derrota.
Mas também ficou a claridade desses anos
e a sensação de que ele finalmente
vive o encontro de amor
que toda a devoção de minha vida não lhe poderia
[dar.
(Um dia, celebraremos juntos.)


XII
Se me tivessem amputado braços e pernas
e furado o coração com frias facas
e cegado meus olhos com ganchos
e esfolado a minha pele como a de um podre bicho
- nada doeria mais
que te saber morto, amado meu,
depositado
nesse irremediável poço de silêncio de onde não
[respondes.

(A não ser em sonho, quando me olhas
e tuas mãos tocam as minhas espalmadas,
abertas, feridas, vazias.)
 
XIII

O meu amado morreu:
preciso viver sua morte até o fim.
Morreu sem que se instalasse entre nós cansaço e
[banalidade.
Talvez tenha morrido na medida certa
para nada se desgastar.
Dele me vem a dor, mas também a ternura,
a claridade que me permite ver
em todos os rostos o seu rosto
em todos os vultos o seu vulto
e ouvir em todos os silêncios
o seu inesperado riso de criança


XIV
Estranha a vida:
fico tangendo meus dias
como um rebanho de ovelhas desordenadas
nessa triste e fria cidade de Porto Alegre
onde ele gostava de estar
olhando o pôr-do-sol e vendo amigos.
"Morrer é tomar um porre de não-desejo"
dizia o meu amado, que era um homem desejoso:
desejava a vida, desejava a morte, desejava
[a justiça,
desejava a eternidade e a paz.


Estranha a vida:
quando releio uma frase sua,
"viver é modular a morte",
em sangue e dor preparo a minha ida.


Estranho também esse amor,
com hora marcada para a mutilação
da morte, o minuto acertado,
e o fim consultando o relógio
para nos golpear.


Estranho esse amor de agora,
com meu amado atrás de um espelho baço
onde às vezes penso divisar seu vulto
como num aquário.
Enrolado em silêncio,
mais que nunca o meu amor comanda a minha vida.


XV
Não falem alto comigo:
andem sempre na ponta dos pés.
Principalmente, não me toquem.
Finjam que não vêem se tenho um jeito absorto,
se nem sempre entendo as perguntas
com a rapidez de antigamente,
se pareço fatigada
e sem graça como nunca fui.


Façam silêncio ao meu redor.
Não me interessa nada o cotidiano nem o místico.
Não quero discutir o preço do mercado
nem os grandes mistérios da eternidade
 
XVI

Levo meu amado no peito
como quem carrega nos braços para sempre
uma criança morta.


XVII
Amado meu, que tanto ensinaste
de mim a mim mesma, e do mundo
a quem o conhecia pouco:


quando se desfizer escura a noite desta perda,
quero enxergar pelos teus olhos,
amar através do teu amor
as coisas que me restaram.


Amado meu, vivo em mim para sempre,
apesar da ruga a mais
e do olhar mais triste,
devo-te isto:
voltar a amar a vida
como agora amas, inteiramente,
a tua morte.

Se vocês chegaram até ao final, parabéns. Já podem dizer que leram um livro da Lya Luft. Eu não falei que era um livro inteiro pra ninguém se sentir desestimulado a ler, pela imagem de ler um livro todo em um post. Mas nem é tão grande, afinal de contas.

Enfim, sentiu?

5 comentários:

DBorges disse...

Li, não por você, nem por ela, li por mim.. E me emocionei, mesmo, quando cheguei ao fim.
E já havia lido algumas poesias dela, mas não este livro.

Tão lindo quando fala do filho que ele quis ter.. E que o filho é a dor do dia da morte do amado..

Um presente, Marcel.

beijo!

Anônimo disse...

Poesia é algo inteligente que para quem a consegue sentir não deve a renunciar jamais

-
que poesia ein, o amor coloca a prova tantos sentimentos:
dentre eles espera, convicção, fúria, ressentimento, dúvidas..

o que mais achei interessante é que ela se mantém amante de seu amado a todo instante até na hora de transcedir seus meros pêsames a sua eterna vida amada.
-

me sinto honrada em passar um tempinho lendo suas postagens,
são poucas as pessoas que possuem um dom tão sensível.

parabéns!

Diana Costa disse...

Andando por aih, achei isto aqui, e a.d.o.r.e.i./
vivenciando um momento de luto em minha vida,
é claro que chorei.
bjux, parabéns!

Unknown disse...

oi! me segue?

Ana Luisa Pacheco disse...

Eu li. Não amadureci instantaneamente.
é bonito, comove, mas num muda.
pq a morte é uma desgraçada, e é a unica que torna os maiores dos amores reciprocos , platonicos.
E de amor platonico todo ser humano entende.