quarta-feira, 3 de novembro de 2010

São Manoel

Luciano Martins Indon tem 54 anos. Não é alto nem baixo. É motorista de ônibus. Acorda às 6:15 da manhã para chegar dez minutos mais cedo ao trabalho. A mulher é costureira, os filhos estão no ensino médio num colégio estadual. Luciano Martins Indon senta em uma cadeira com uma almofada a mais no assento, por causa das hemorroidas. Leva uma garrafa d'água aos pés. Dirige a linha São Manoel, quase sempre com o mesmo cobrador (e já são quase amigos...) mas o que mais deseja é as linhas circulares - C1, C2 e C3. Por quê? Porque a maioria das pessoas é cheirosa. É gente que pega condução para ir pra faculdade, pro Mercado Público, pra ir pro médico. A maioria cumprimenta.

Estava com pressa para comer as bolachas que a Mulher empacotou. Parou no Mercado Público e esperou a fila entrar. Entrou gente jovem, gente velha, gente que parece que daria oi, gente que parece que fingiria que Luciano Martins Indon não estava ali. Desta vez, uma moça subiu com uma mochila pesada e  filho no colo. O filho deu oi, e Luciano Martins Indon deu oi de volta. A Moça com o Filho passou por Cobrador e sentou num assento longe. Entrou um garoto. Eu disse:

- Bom dia.
- Bom dia.

Ponto. Henrique João Azevedo tem 28 anos. É magro e hemofílico. Cobrador de ônibus. Trabalha na linha São Manoel. Acorda às 7:00 da manhã para chegar 10 minutos atrasado ao trabalho. Tem uma namorada que ele pensa que o trai. Mas não tem certeza: e já que estão morando juntos, vai esperar alguma prova. Mas só uma. Enquanto isso, olha as mulheres semi-nuas do Diário Gaúcho. Não sabe, mas as cores do jornal deixam-no confuso. Mesmo se soubesse, ainda compraria, porque é o que o dinheiro deixa. Estuda à noite para o concurso da CEEE. Seu sonho é trabalhar em um lugar com ar-condicionado.

Enquanto isso, são 10:15 da manhã, e o ônibus parou no Mercado Público. Entraram várias pessoas. Uma delas era sua prima de terceiro grau com uma mochila do exército pesada e um bebê no colo. Henrique João Azevedo olhou para baixo e fingiu não a reconhecer. Ela não o reconheceria como cobrador. Ele não se reconheceria como cobrador. A prima e seu filho sentaram na última fileira. Ela encarou ele, porém não falou nada. Henrique João Azevedo ficou nervoso e começou a pensar se ela comentaria com alguém do primo cobrador. Enquanto isso, passei pela catraca e disse:

- Bom dia.

Ponto. Vanessa Assunção Azevedo tem 33 anos. Não é alta nem baixa, mas usa salto alto. Passa batom vermelho nos lábios para esconder os cortes feitos em brigas com o marido. Trabalha em um call-center. Está fugindo de casa pois não aguenta mais as agressões. Vai para a casa de uma colega de trabalho. A gota d'água foi o filho ter corrido para ela quando viu o pai chegar em casa. O filho nunca tinha dado um passo em pé.

Na mochila, está tudo o que o nervosismo permitiu pegar 20 minutos após o marido ter ido ao serviço. A única coisa que pensa é que não pode trabalhar mais onde trabalha. Não sabe o que vai fazer da vida. Não sabe como vai comer. Não tem família, e justamente por isso é que havia se mudado para a casa do homem que até agora lhe estendera a mão. Não para dar comida.

Espera ansiosamente o São Manoel chegar. É o segundo ônibus que pegará para chegar à sua amiga. Chegou. Vanessa Assunção Azevedo sobe e finge que não vê o motorista. Passa pela catraca e dirige-se à última fileira. O Marido levará umas oito horas para chegar em casa. Quando descobrir, ligará para o trabalho dela. Não adiantará, porque Vanessa Assunção Azevedo já terá se demitido. Já tem arranjado um trabalho no call-center da concorrência. Pensa em, um dia, talvez, ligar para o ex-marido, e, quem sabe, ver se uma mulher atende o telefone. Se atender, falará rapidamente que a mulher deve fugir, que não espere mais, que não dê outra chance porque na próxima vez não será diferente, corre, corre, eu sei o que eu falo, você merece alguém que te ame da maneira como você sonha, então foge, amanhã você faz normalmente a marmita dele e sai de casa 20 minutos após ele passar pela porta, vai para a casa da sua família, da sua melhor amiga, mas corre, olhe para seus hematomas e corra sem olhar para trás porque a vida é pequena, toda a sua angústia, a sua culpa, nada faz sentido, o que faz sentido é que você corra, não correr dele, mas correr em direção àquilo que você merece.

Pedi licença e sentei ao lado dela.

Um comentário:

Anônimo disse...

Que texto genial!
Estou de queixo caído