sábado, 26 de fevereiro de 2011

Ela rumava e estrangeira em todos os lugares (Prosa)

Era uma garota triste. Tinha saúde, sim, era possível chegar à esta conclusão pela cor da pele. Apesar disso, seu pouco vigor era notável: parecia ter acordado de uma péssima noite de sono. O pouco vigor estava nos olhos. Posto que ele sempre está nos olhos, estava especialmente nos olhos dela. Não possuía a tristeza de quem tem uma coisa e depois perde, mas uma tristeza de amargura e decepção, como quando alguém de idade avançada se cansa de viver e mostra nos olhos que há tempos perdeu a esperança de reaprender a evocar algum momento bom.

A garota me olhava com uma vontade de desistir meio singela, meio baixa autoestima, dizendo-me que era tão pouco para estar na minha frente. Senti-me deveras angustiado, desejando poder fugir da frente da minha casa e daquela situação. Era um olhar que transparecia uma monotonia, eu não sou muita coisa, não, aliás, não tenho muitos motivos para substancialmente defender-me, se você quiser pode me dar um tapa, eu só queria....

- Pois, não? - perguntei focando-me nos seus olhos para tentar dissuadi-la do olhar de miserabilidade.

- Está um pouco frio aqui fora, posso entrar? - respondeu, evitando meu olhar. Não sei se sabia da minha compreensão de seus sentimentos. Sei nem se sabia dos seus sentimentos. Tinha frio e fome.


Continuação em poesia.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Mala de quatro estações

Para quem não sabe, há uma expressão, na língua portuguesa mesmo, que diz vai esconder onde, então? no tempo?, que se utiliza com o interlocutor a fim de dizer que não há lugar para esconder aquilo de que se fala. É nessa expressão que o poeminha a seguir se inspirou.


A partir de agora
Guardarei minhas melancolias no tempo
Mala de verniz e cruel
Escondendo as minhas glórias
E todas as frustrações do depois
Se soubesse de suas funções
Nunca a teria comprado
Venderam-na como quem vende fiado
De jeitinho bravo
E rancoroso
Lá sabia eu
Que o belo presente viria cheio de adornos
E missanguinhas sem brilho e odor
Conteúdo mistíco e amargo
De exterior um pouco gago
Repetindo sempre as mesmas lições
Sem que em uma era eu aprendesse
Me vendo agora, sinto-me especialmente patético
Por dar voltas e voltas
E quedar-me no mesmo lugar...

Eu sempre quis voar
Mas pensando bem
Parece-me deveras exaustivo
Controlar cabeças lá do alto
Sem deter a real certeza
De que caso eu manque
Alguém pode me pegar
E salvar-me de quedas absurdas
Tomando-me eternos segundos
Em que os utilisaria para mostrar minhas mesuras
Meus modos à mesa
Aprendidos há mais de quinze anos
Quando não largava a mamadeira
E o dia parecia não passar.

Eu usava uma mala boa
E nova
Que ao adquirir manchas de uso
Se deteriorou. Como rugas
Fixadas em pele áspera
Agora ela parece querer agonizar
Mas isso não há de me tocar
Já que os decênios andam tão rápido
Que mal posso ligar para mim

Quem dirá para ti, mala de formosura e tempo.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Número 392

Alimentar-me do mel a jorrar da tua boca
Não preciso disso
Venturas de mexer com venenosas
As cobras, as deslizantes infiéis
Aventuras de cair em piedades
Nas obviedades de Nossa Senhora
A Mãe Maior, a bendita
Para quem rezas em tom de diminutos
Mas apenas assim
De manias imperfeitas
É que rendes tua cabeça ao meu sinal
(Como se me saíssem raios das mãos...)
E minha voz em ressonância
A milhares de quilômetros me avisando

Que logo teu veneno há de ir embora...

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Aquele reino terrorista

Nem por uma ordem real
Eu mudaria minha constatação
E que venham ratos roedores
Das mais distintas regiões
Amálgamos nos seus grupinhos
E perversos no seu tamanhinho  
De mim levarão nada
Além de pedaços de dedos
E anéis de linhagem familiar...

Mas que rei mais colérico a governar
Esqueceu-se dos impostos pagos pelo povo
E das crianças travessas roubando maçãs da venda
Há de decapitar suas cabeças, então?
Há de mandar fazer pequenas guilhotinas
Para seus pequenos pescocinhos
Inocentes como um dia Ele foi de ser
Há décadas atrás
Criado por uma governanta séria, de porte arrojado
A barra do vestido sempre por ele puxada
Em busca da proteção contra o pai
Príncipe da Escória
Desatos desvelando histórias pra contar
Cruel. E apequenado como o cachorro linguicinha
Correndo atrás dos ratos no palácio
Povoado por cabeças sem cabelos
A revelar os poucos zelos
Por este povo imbecil
E sem relhos

De destilar suas ações
Parecem não saber refletir
Sobre o ser-estar agora
Parecem não saber das horas
Que passam e passam sem parar
Ainda que o relógio se mantenha
Parecem perecer no tempo
Porquanto suas faces se desintegram
Enquanto a burguesia mata cobras e golfinhos
Para extrair-lhes a essência
Em pequenos frascos de juventude
E a realeza atenta
Logo procura cobras lá da África
E golfinhos da Austrália
Nadando rapidamente
Contra a decisão do rei
De buscar o vira-tempo
No outro canto do mundo
E enquanto isso os minutos acabam por ir embora
Sem nunca saber se é hora

De parar.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Lascívia é uma palavra bonita

Então eu estava no banho e sabe-se lá por que pensava em motivos das pessoas serem pervesas umas às outras, quer dizer, no final não somos todos a mesma coisa? E agora venho com aquela coisa panteísta chata de que somos todos energia, mas não somos mesmo? Se você tivesse uma espécie de óculos especial, veria apenas infinitas moléculas de carbono ao seu redor. Outras moléculas também, hidrogênio, oxigênio, nitrogênio e todas aquelas coisas de química, tantas coisas que, em realidade, seriam poucas comparadas à intensidade do carbono que ofuscaria toda a vista. Então somos todos carbono, somos tudo carbono; e, agora, vem a parte mais engraçada: pessoas amam moléculas. E não é de dizer que a vida é de uma simplicidade?

Porque somos moléculas e amamos moléculas, há darwinismo maior na nossa existência? Ao cabo e ao rabo, toda a experiência terrena não passa de interação molecular, de onde extaimos interações sociológicas e antropológicas e políticas e humanas etc e tal. Tudo é molécula girando e girando, zilhares de elétrons voando por aí, se chego perto de você, meus elétrons circudam TODO o seu corpo, quer dizer, já conheço você por completo, seu coração, cérebro, sexo e pulmão, por que colocamos máscaras em nossas relações se, antes de trocarmos uma mísera palavra e extrair um ridículo fonema, já percorremos cada parte do outro? Há de haver amor maior do que isso, o mundo é uma alegria mesmo, estou eu neste momento de compartilha para dividir que factualmente não há solidão, só há fusão, carícia, lascívia.

Só há amor e o Minha Polaroide voltou.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Seca

A reminiscência, onde
Não sei se vejo
Mas ainda prevaleço
Das dezenas de máscaras a contornar minha face
A que mais pesa és tu
E já nem sei o que fazer de nós
Das tuas reticências em meu corpo
Adicto em explanações de si
Em ocorrências nos teus palcos
De momentos esquecidos

Que mágica é esta que destitui o teu trono
Ah, querido
A vida é esta desilusão toda que pensas
Mas te revoltas e te apegas
Nos meus versos estrábicos
(E eu nesta melancolia passageira que bem sei...)

Faz calor agora, e mosquitos voam ao meu redor
Parecem querer tirar meu sangue
Mas não há o que tirar
Tudo já flui nas tuas veias
E agora só águas de ribeiras falsas me compõem
Agora faz calor; meus rios secam
Talvez por isso eu sue
É que minhas águas lá dentro procuram escapar
E por isso já estou
Longe, longe...

Liberto das cadeias de mim mesmo.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Ele que não era um herói

Na verdade não se sabe se ele era mágico ou se sua câmera. Nem ele realmente sabia. Não por falta de curiosidade, mas mais por ausência de resposta. O fato é que ambos – ele e a câmera – eram um sucesso. Tudo começou não se sabe como, e também mal sabem como terminou. Porém tudo tem um início, bastando simplesmente ser encontrado. Pessoas não encontram seus inícios; por isso se confundem neste mundo louco.

Contudo o fato é que cada vez em que um casal deixava-se fotografar por ele – e sua câmera -, recebia em suas mãos a melhor foto que poderia existir no mundo. No mundo mesmo, contando todos os 200 e tantos países que há por aí. Nunca nenhum crítico de arte ousara questionar sua genialidade. Todos, em uníssono, veneravam suas fotos de casais. Ele era um retratista de casal, porém não com mero status de retratista. Era o melhor e mais genial fotógrafo da história. Cada foto tirada era considerada a melhor foto tirada do mundo, em todos os quesitos que alguém pode pensar: enquadramento, exposição, conceito, detalhe etc. No início,  

fora árduo obter reconhecimento, não obstante é o que ocorre com fotógrafos. Mas conforme se foram formando filas e filas de casais fazendo poses, acabou por obter fama internacional. Pagavam fortunas para uma fotografia sua que, sabia-se, posteriormente poderia ser vendida por talvez o dobro do preço. Posto que pessoas são da maneira com que todos as conhecem, vez em quando apareciam falsos casais, cujos interesses não eram registrar amor ou paixão; apenas o foco na futura fortuna. O fotógrafo, no entanto, nunca precisou se preocupar: a câmera, talvez por instinto, sabia quando eram falsos os modelos à sua frente, e, automaticamente, a foto saía em negrume. Até hoje, não se sabe se a mágica estava nele ou a câmera.

Estavam em simbiose.

Estava em simbiose:
Os dois.
Densos como nunca se viu,
Nunca há de se ver
Ambos:
Dois que não são dois.
Matemática boba esta,
Um em corpo de dois
Densos
Ambos
Dois
Que não são
Dois
Que são só um.

A algumas cidades de distância, um casal estava sentado no parque. Faziam um piquenique com lanches nem rápidos nem lerdos. Sanduíches, suco pronto, bolo de chocolate e um bombom para dividir juntos. Era sol e um daqueles momentos em que não se está nem extremamente feliz, nem extremamente triste. Somente se está. Os dois no parque só estavam. Contando assim parece que eram infelizes, porém não eram. Apenas eram. Casais não precisam estar felizes o tempo todo para estar felizes. E por isso estavam no parque.

Passaram-se os segundos e ambos morreram sem saber o motivo.

A imprensa não cobriu nada, até porque não fora nada que chamasse a atenção. Contudo, sem muito alarde nem festa, alguns casais passaram a morrer misteriosamente. Legistas tinham explicações simples: ataque do coração, AVC, isquemia cerebral etc. Posto o motivo, ainda eram mortes. Algum observador no mundo – pois sempre há aqueles que juntam as peças – deu-se conta de que os casais mortos algum tempo antes haviam posado para o fotógrafo gênio. Naquele dia, tablóides de todo o mundo fizeram sucesso.

O fotógrafo foi chamado a depor, como principal suspeito das mortes. Ficou preso por uma semana. Mas a lei, que nada sabe sendo cega, perdeu-se. Dois casais modelos morreram enquanto o maldito estava na cadeia. Foi liberado com temores de futuros. Em pouco tempo, viu sua clientela despencar. Casais de todo o mundo cancelavam seus ensaios fotográficos. Agora, ele caía metro a metro num poço fundo, denso, como em câmera lenta. No presente percebia o seu presente, porque contrariando a filosofia, ele percebia o segundo que estava, e não só o que passava. Sobrevivia de alguns ensaios, visto que ainda havia casais que se deixavam fotografar. Uns porque criam na inocência dele, outros porque lhes apetecia a roletarrussa. De qualquer jeito, pessoas são loucas.

Prevendo sua falência e sua iminente derrocada, decidiu averiguar a existência de casais que pudessem estar vivos. Achou sua agenda, ligou para uns, para outros, para quase todos. Mortos mortos mortos. Até que

uma mulher atendeu. De voz hesitante, trêmula e bastante abalada, perguntou quem era. O fotógrafo se identificou procurando alcançar uma voz tenra, e antes de a mulher desligar o telefone, explicou sua situação, disse que,

não sou assassino por favor não sou assassino já sei eu pois ligo apenas para provar minha inocência já que tu bem sabes que estás viva e és prova de que minhas fotos não matam, minha câmera é boa e sempre me protegeu de impostores, por favor, dê-me uma oportunidade de eu mostrar que há ainda casais vivos 

E que o amor ainda vive.

Ela lhe respondeu que estava bem, assim como seu namorado de três anos, mas que o medo lhe impedia de sair de casa:

- Não posso ajudar-te – disse, em seguida colocando o fone no gancho.

O fotógrafo caiu em prantos
Caiu em prantos
As dores que hei de saber
Já não sei mais
Tudo o que eu tive e já não tenho
Pareço não ter mais
Caiu em prantos
O fotógrafo de casais
No chão da sala caiu em prantos em choros em lágrimas no piso gelado

Até que a emoção lhe tomou o chapéu.

Ligou para o próximo número. Um homem atendeu. O fotógrafo explicou calmamente a sua situação e intenção. Talvez por sentir a firmeza do outro, o homem concordou em ajudar. Ao longo do dia, mais casais foram contatados, mais e mais e mais e de repente todos estavam vivos, ali, no brilho de viver. O agora decidido reuniu todos, combinou horário e ponto de encontro. Foram à emissora de TV com maior audiência. Expôs seus dramas, suas lamúrias, eu que fui criado por pais opressores, eu que fui criado sem arte e tive que a tirar do mundo, fotografo com minha fiel que não me abandona, eu que não sei enquadrar, é tudo uma mentira, apenas deixo-me ser enquadrado pelas pessoas com seus sorrisos e alegrias e felicidades. Eu que não sou um herói.

Ele que não era um herói. Levantou-se da amargura e voltou a fazer sucesso. Muitos do povo indagavam-se, mas como, as pessoas são tão burras? E assim arriscar-se a morrer e cair por um piripaque. Um casal, saindo do estúdio do Fotógrafo, foi abordado por um jornalista: “Por que vocês vieram aqui se correm o risco de morrer e acabar com seu relacionamento?”.

Porque todos sabemos que terminaremos
Todos sabemos que um dia morreremos
Nesta vida infiel
A carne é fraca
Todos com vícios de morte
E manias de sofrimento
Todos
Na morte e na vida
Simplicidade que é viver
E a morte um dia há de chegar...

*
Casais foram felizes.