sábado, 24 de julho de 2010

Poderia

Acordei hoje e vi o resquício de um sonho meu. Não sei o que era mas na hora pensei que há muito tempo não lembro de sonhos meus, bem que poderia ter sonhos loucos daqueles em que temos super-poderes voar atravessar paredes sei lá. Acordei e pensei que se sonhasse seria algo como

ele correu por uma rua escura escura escura não só da noite mas também escura de vida, não tinha vida não tinha nada, a luz que tinha era de um poste que parecia ser alimentado a óleo de baleia, só isso, uma baleia morreu para dar-me luz, ele pensou, Ele pensou mas a baleia não pensava mais. Correu pela rua escura com um diâmetro de cinco metros, como aquelas ruas de Veneza em que nem carros como Uno conseguem passar, passa gente magra, passa gente gorda mas duas delas talvez não. Ele correu correu porque tinha que correr não era pressa era mesmo fuga de algo que não via, só sentia como: se uma mão de sombras andasse atrás no mesmo passo, não poderia ser a sua sombra porque estava tão escuro que era preciso que uma baleia morresse para iluminar o ambiente. Correu até que chegou a uma cerca mais do que enferrujada era puro tétano e não havia o que fazer além de pegar tétano. Parou e virou-se costas e tocou a grade com as mãos e disse, é agora: uma lufada de ar veio em seu corpo (primeiro os cabelos voaram) depois sentiu a carne queimar como se mil formigas mil insetos estivessem a lhe picar, ele disse, não!, e de repente suas pernas viraram pernas de tigre: conseguiu dar um pulo que de tamanho pulo contornou a grade. Correu mais mais tinha pernas de tigre e nem olhava para os pelos as unhas grandes que riscavam o chão, pensou, se minhas unhas riscam o chão faço como João e Maria deixando meu caminho pela rua se me matarem se me acharem vão saber de onde vim e para onde ia verão que fui apenas alguém que correu desesperadamente para salvar a vida e por algum motivo que espero que descubram morri mataram-me às quatro da manhã. A mão de sombras vinha atrás, implacável e esperta, de tão rápida parecia imóvel como aquelas coisas: aqueles movimentos que são tão rápidos que se pensa que estão parados e fazem pensar em alguma tese de física quântica que diga que é tudo relativo, o referencial, o sujeito e o objeto, tudo depende de você, meu caro minha cara, o mundo é para se engolir. A mão seguia, Ele corria, a rua não acabava e os postes iluminavam: cansou de correr, o Instinto dizia, não há tempo para parar não há tempo para pensar é por isso que sou eu quem falo agora só lhe resta correr desenfreadamente miraculosamente escaparemos do desastre eu e você instinto e razão um auxiliando o outro sempre ao lado um dia a guerra acaba (porém eu hei de vencer), tudo isso o Instinto disse, então Ele respondeu, razão e instinto, qual me ajudará?, e o instinto disse, deixe-me tentar, Ele disse "vá em frente", Instinto respondeu: vá você - e instantaneamente não eram somente pernas de tigre mas Ele todo se tornara um tigre, não mais correndo mas aquilo que os tigres fazem, que quando os cavalos fazem chamam "galopar", o Tigre tigreleava pela rua escura iluminada por postes que pareciam abastecidos a óleo de baleia se: fosse Ele, teria pensado "tantas baleias tantas baleias mortas para iluminar meu caminho numa noite escura num lugar em que não sinto almas não sinto auras je ne sais pas what's going on porque essa luz não apaga a sombra que me persegue mão negra em todo meu percalço morre morre muera hija del diablo todas essas baleias mortas quantos cadáveres ó meu Deus tanta morte para dar-me chance à vida se não fosse esta luz eu estaria sem luz cadê a luz da minha vida", porém agora era Tigre e não pensava. Correu tanto que chegou a outra cerca, porém tão alta que nem mesmo um pulo de tigre a ultrapassaria. Instinto: - deixa-me te ajudar outra vez. Tigre: - rawrrrrr (não quero pois antes corria menos porém pensava mais agora sou um tigre e corro tanto que fugi da consciência). Instinto: - De que lhe adianta consciência se te tornarás morto. O Tigre concordou, cedeu mais um pouco de sua consciência, disse "rawr (salva-me daquilo que não tem salvação)". Ficou leve leve pequeno mas tão indefeso quase inocente, tentou correr mas deu dois pulinhos, quando viu era um pássaro. O Pássaro bateu as asas e contornou a grade a tempo de fugir da sombra. Voou alto alto alto tão alto que a vista era de uma beleza tão absurda que não se grava na lembrança a vista, mas o sentimento que se tem ao vê-la, se fosse Ele, pensaria "que vista absurda é tanto para os meus olhos minha vista minha cabeça vai explodir com tanta informação esses prédios com escritórios com gente trabalhando pensando fazendo o mundo mover enquanto a maioria está imóvel em suas camas já no sétimo sono sonhando com o dia em que elas estão na praia com algum famoso para falar para a família que 'nem te conto, sonhei que estava numa praia paradisíaca com aquele ator que foi pego com cocaína, sabe aquele que se drogava e foi preso no loft, ai como queria ter um loft só com divisória no quarto e no banheiro, todo mundo vendo eu cozinhar e a minha sala e minha tv de 51 polegadas e aqueles quadros que comprei em Buenos Aires', tantas família juntas decerto há algum recinto em que há um assaltante fazendo inocentes de refém, numa cobertura um casal trepa até se arregaçar em outra um homem esfaqueia a mulher a fazendo cair na piscina, se fosse Ele, pensaria em tudo isso, porém agora era um Pássaro e só queria ir para o ninho.

Poderia sonhar com isso, mas não sonhei, só acordei de manhã e pensei na vida.

4 comentários:

Anônimo disse...

Pois estranho, eu sonhei com isso.
Mas aí dormi e vi que era verdade.

Brincadeira.
Excelente texto!

Anônimo disse...

Aliás, adorei o ritmo da falta das vírgulas.

Mari disse...

Que loucura seria ter pernas de Tigre!

Ana Luisa Pacheco disse...

Ao mesmo tempo que eu vejo um Caio Fernando Abreu nesse texto, eu vejo muita, muita identidade própria.
Esse jogo de pontuar ideias, com uma pontuação diferente.
Acho que é o seu texto mais diferente dos últimos. Tem um brilho próprio, uma vontade que não acabasse nunca.